Alemanha | 81min | super 16 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Irma Strehle
Som: Joe Crab, Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Ernst Reijseger, interpretada por Mola Sylla e os coros sardos Tenore e Cuncordu de Orosei
Elenco: Brad Dourif
“É um filme de ficção científica com um alienígena, Brad Dourif, que eu amo como ator, e que tem algumas das cenas mais extraordinárias já filmadas no espaço, em uma missão espacial realizada em 1989. Os astronautas filmaram eles próprios dentro da espaçonave em celuloide de 35 mm, com uma qualidade tão grande que eu quis criar uma história de ficção científica em volta deles. A segunda parte tem imagens filmadas sob a camada de gelo do Mar de Ross, na Antártida. É um mundo completamente alienígena: se você nada embaixo do gelo é como se estivesse em um planeta diferente, que eu chamei de The Wild Blue Yonder ("Além do Azul Selvagem"), em algum lugar na nebulosa de Andrômeda. É uma fantasia de ficção científica selvagem, com música extraordinária, de Ernst Reijseger." 1
Como diz o próprio site do diretor, The Wild Blue Yonder “é a história de astronautas perdidos no espaço, o segredo de Roswell ‘reexaminado’ e Brad Dourif, em ótima performance, como alienígena, nos contando tudo sobre seu planeta natal – O Selvagem Azul Longínquo – onde a atmosfera é composta de hélio líquido e o céu é congelado. Usando imagens únicas, belas e inéditas, com acesso aos cinco astronautas responsáveis pela missão Galileo, e com música especialmente composta, Herzog criou uma visão espetacular de imagens, sons, música e emoção humana, tudo parte de sua ciência-fantasia”. 2
Nada muito modesto, mas o filme é isso mesmo: um arremedo de ficção científica com imagens deslumbrantes do céu e da terra. Sim, isso lembra Fata Morgana e Lektionen In Finsternis, tanto que a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli sustenta que os três filmes formam uma espécie de trilogia: “Fata Morgana, Lektionen In Finsternis e The Wild Blue Yonder tornam-se etapas sucessivas de um projeto de ficção científica, perseguindo a ideia do olhar alienígena que nos oferece elementos impensáveis e momentos de reflexão sobre a criação, sobre a vida e sobre a morte. Precisamente, fragmentos de uma trilogia de ficção científica, que se inicia nos desertos africanos, com o mito do Popol Vuh, quando a Terra não tinha forma, quando tudo era silencioso, céu e água, continua pela fúria ardente dos poços do Kuwait, na hostilidade cortante de seres desconhecidos, e se conclui nas profundezas sem fim do mar e do céu. Uma volta completa, do céu ao céu, do seu brilho inerte à obscuridade do abismo, da origem ao fim dos mundos”. 3
Alien |
O estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager concorda: “O filme empreende um projeto com o qual Herzog está há muito engajado: alcançar a visão do mundo como um astronauta poderia vê-lo, uma visão da Terra que ele tentou alcançar com Fata Morgana e com Lektionen In Finsternis. Herzog é bastante explícito sobre essa interconexão, considerando que os três estão em algumas variações de nível do filme de ficção científica.” 4
O plot é tão livre quão intrincado: uma missão espacial se vê impedida de regressar a Terra porque, devido a uma estranha e letal bactéria, as condições de vida por aqui se tornaram impossíveis; assim, os astronautas se lançam espaço sideral afora em busca de outro lugar para habitar, e julgam tê-lo encontrado na Galáxia de Andrômeda. Tudo isso é contato por um alienígena, justamente desse planeta, que veio a Terra numa fracassada tentativa de contato com a espécie humana, pois seu lar também estava se tornando ambientalmente inviável para sua raça. E os terráqueos, quando voltam para cá, quase mil anos depois [as viagens são feitas via buraco-deminhoca], se deparam com o orbe totalmente desabitado de pessoas, retornado ao seu estado selvagem, primordial.
Grazia Paganelli acrescenta: “Assim, no final de The Wild Blue Yonder, depois da utopia de uma colônia espacial, o regresso dos astronautas a Terra é uma surpresa zombeteira. Ao fim de 820 anos atravessam o túnel do tempo, os seus corpos se dissolvem em partículas e depois em luz pura, mas a Terra já não é habitada, tornou-se um enorme parque natural sem estradas nem aeroportos onde aterrar. 'Regressara à sua beleza originária. Era de novo a Pré-História'. Como penetrar num espelho profundo, depois de tanto viajar, depois de ter enganado o tempo, com a necessidade de recomeçar desde a origem de tudo”. 5
Terráqueos |
Sim, é uma confusão, e confesso não ter entendido direito quando vi o filme pela primeira vez, numa mostra de cinema, em meados da década passada [e nem sei se entendi mesmo agora]. Porém, o arremedo de história é contado com diversos artifícios – o alienígena, imagens de cinema mudo, sequências com astronautas em um módulo espacial e tomadas nos mares gelados da Antártida – que dão como resultado um filme muito bonito, ainda que muito mais sensorial do que propriamente disposto a contar uma história. É extático e ora catártico, ora com certo humor deprimido [deve ser o tal ‘humorismo bávaro’ a que Herzog se refere em alguns de seus filmes].
Além disso, nesse tipo de filme herzogiano, não se pretende que os espectadores se encontrem imersos na história retratada na tela; ao contrário, é exigida uma suspensão de descrença bastante ativa. Afinal, além da história frouxa, o filme não faz nenhum esforço para ser realistas: o tal alienígena narrador não tem qualquer vestimenta, maquiagem ou modo de falar que o diferencie de uma pessoa ordinária; as imagens subaquáticas da Antártida, que aparecem à guisa de planeta natal do ‘Alien’, incluem mergulhadores movendo-se na água e momentos em que se pode perceber claramente mãos com luvas de mergulho seguram a câmera digital que grava as sequências.
Tudo isso dá certa inadequação ao material: a narração do Alien, as imagens do começo do século 20 ilustrando ironicamente suas falas, tudo é deliberadamente feito para que soe estranho e até ridículo, como detalha a estudiosa norte-americana de cultura alemã Laurie Ruth Johnson completa: “Em The Wild Blue Yonder, como em outros filmes, Herzog repetidamente nos dá imagens de coisas que funcionam independentemente das próprias coisas. As coisas podem ter certo sentido, mas Herzog usa imagens de um modo que não enfatiza nem sequer se refere a esse propósito. Não vemos aplicação para as turbinas, o exercício do tanque de água do astronauta é descontextualizado, e nem trens nem caminhões chegam a uma estação, e ainda assim todas as imagens dessas coisas são propositais e ocres dentro de si ”. 6
Quanto ao humor, o próprio diretor confirma: “Como em muitos dos meus outros filmes. As pessoas raramente falam nisso, mas quando os vemos na sala de cinema, há sempre alguém que ri porque compreendeu o absurdo total de certos momentos. Rimos mais quando vemos The Wild Blue Yonder do que quando vemos uma comédia do Eddie Murphy. Se pudéssemos cronometrar a duração do riso, estaríamos quites, eu e Eddie Murphy. Em The Wild Blue Yonder, o humor não é calculado como num filme de Billy Wilder, por exemplo. Wilder calculava seu timing de comédia com uma precisão extrema. No meu filme, o humor tem uma qualidade diferente, vem da pura alegria de fazer filmes. Naturalmente que, considerando a forma como nos divertimos, o humor aparece misturado com o gozo espontâneo de todos que participaram do projeto, com o nosso próprio riso (...) Diria que o humor emerge organicamente dos meus filmes. Não há nenhum plano preciso calculado para obter o efeito cômico. Tudo faz parte da alegria pura em contar uma história”. 7
Azul & longínquo |
Para além desse tal ‘efeito cômico’, o que realmente impressiona no filme – assim como fora em Fata Morgana e Lektionen In Finsternis – é o uso de imagens da Terra, do lugar onde vivemos, de pessoas como nós, como se fossem polaroides de um lugar ou um futuro muito distantes: essa sensação de estranheza e maravilhamento diante do que, de certa forma, vemos [ou podermos ver] com certa facilidade é um grandíssimo talento de Herzog, e, mais que isso, é mostrar que neste planeta e entre a gente há muito caos e estranheza. Por isso essa opção de fazer ficção quase que somente com imagens documentais.
Essa ideia de que mesmo nosso mundo não nos pertence, que mesmo aqui não sejamos acolhidos, é, de certa forma, compartilhada por Grazia Paganelli: “É a invenção da realidade que reina em The Wild Blue Yonder. Aqui o jogo ainda é mais sutil [que em Grizzly Man], o excesso de sentido das imagens da Nasa é contrabalançado por um excesso de ficção. A história dos extraterrestres, exposta na sua dramaticidade vibrante, perde-se no imenso espaço ‘irreal’ das profundezas marinhas e dos abismos do cosmos. Recorda-nos Fata Morgana, a miragem de qualquer coisa que, ao mesmo tempo, existe e não existe, imagem nunca vista que não será mais possível ver do mesmo modo”. 8
O filme trabalha com temas caros ao diretor: a ideia de que a existência, a natureza, tudo é extremamente caótico e hostil; a vida na Terra deu errado, a vida em outros planetas dá errado, tudo é selvagem e inóspito; as relações dão errado, até mesmo entre humanos e alienígenas; o Alien é um perfeito desajustado, praticamente um Stroszek interestelar; e, por fim, uma ideia megalomaníaca de conquista falha miseravelmente. Todo sonho de conquista acaba em desolação no universo herzogiano. No Selvagem Azul Lingínquo que há lá fora e dentro de nós.
Para encerrar a análise deste filme que, por mais estranho, eu julgo obrigatório para quem ame cinema [numa tela grande o efeito é bem melhor, mas enfim], se você estiver no clima para embartcar nessa quase-história de melancolia infinita, nada como a frase do crítico inglês de cinema Mark Kermode: “Quanto a Herzog, ele é um bravo soldado do cinema, sem medo de fracassar, sempre pronto para levar a bala enquanto continua audaciosamente aonde nenhum homem foi antes”. 9
Curiosidades:
– sobre o orçamento do filme, o alemão explica: “É interessante como eu financio meus filmes: The Wild Blue Yonder foi feito inteiramente com o dinheiro que eu ganhei com meu filme anterior, O Homem-Urso, que foi um enorme sucesso de público, o maior nos cinemas dos EUA de um filme de não ficção; ganhei algum dinheiro com esse documentário e imediatamente investi tudo nesse outro projeto; provavelmente é por isso que eu nunca vou enriquecer (risos); minha riqueza são meus filmes”; 10
– parte da ideia de The Wild Blue Yonder vem do argumento que seria usado, mas acabou descartado, em Fata Morgana – uma história sobre alienígenas de Andrômeda cujo planeta estaria em vias de ser destruído;
– a trilha sonora é feita e executada pelos mesmos responsáveis pelas músicas de The White Diamond;
– sobre as teorias científicas que aparecem no filme, o diretor conjectura: “Se não tivesse começado a fazer filmes, talvez tivesse sido matemático; acho que teria gostado de sê-lo”; 11
– a série Futurama, de Matt Groening [que já havia feito piada com Fitzcarraldo n’Os Simpsons], tem um episódio, de 2009, chamado Into The Wild Green Yonder.
1 10 https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/11/werner-herzog-a-zh-daria-tudo-para-conhecer-garrincha-3962003.html
2 https://www.wernerherzog.com/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=52
3 5 7 8 11 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
6 JOHNSON, Laurie Ruth. Forgotten Dreams: Revisiting Romanticism In The Cinema Of Werner Herzog. Cadmen House, 2016.
2 https://www.wernerherzog.com/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=52
3 5 7 8 11 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
6 JOHNSON, Laurie Ruth. Forgotten Dreams: Revisiting Romanticism In The Cinema Of Werner Herzog. Cadmen House, 2016.