segunda-feira, 1 de agosto de 2016

(1990) Echos Aus Einem Düsteren Reich

Alemanha (rodado na República Centro-Africana) | 93min | 16 mm |cor
Roteiro, direção e produção: Werner Herzog
Som: Haraud Maury
Montagem: Rainer Standkle
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Bartok, Prokofiev, Lutoslawski, Shostakovitch, Schubert, Bach e Lanardier
Elenco: Michael Goldsmith, François Gilbault, Augutine Assemat, Francis Szpiner, David Dacko, Marie-Raine Hassen


O filme nos permite revelar as verdades menos compreendidas do homem. Ele investiga as nossas fantasias e nossos sonhos - neste caso, nossos pesadelos. Bokassa representou o tipo de escuridão humana você encontra em Nero ou Calígula, e Echos Aus Einem Düsteren Reich foi uma tentativa de explorar os abismos escuros que estão no coração do homem.” ¹

Em mais uma incursão a África, Werner Herzog leva o jornalista austríaco radicado na Inglaterra Michael Goldsmith (1921–1990) até a República Cebntro-Africana, onde, em 1977, quando cobria a cerimônia em que o ditador Jean-Bédel Bokassa (1921–1996) entronizou a si mesmo como imperador do país, foi preso e torturado por um mês por suspeitarem [injustamente] de que ele fosse um espião.

Nessa nova visita, Goldsmith conversa com parentes, aliados, desafetos e gente que também sofreu com os desmandos de Bokassa. Aparentemente, ele não tinhas grandes traumas com o ocorrido – diz-se que chegou a manter contato com o ditador quando este estava exilado na França –, e o contato com mulheres e advogados de seu algoz não lhe trazem nenhum rancor. O jornalista mostra real interesse e empatia por todos os relatos, bons ou ruins, que vão construindo as camadas de terror que não só ele ou aquelas pessoas, mas que todo o país viveu no final da década de 1970.

Império sombrio

Goldsmith não sentia nenhum prazer na queda do tirano, não há sinal de qualquer vingança, mas apenas paciência, o que chega a ser incômodo, dada toda a escuridão em que ele vai submergindo a cada história ouvida. Chega-se a pensar o que de fato ele pretende com essa viagem, além de ser prestativo com o amigo diretor.

E o filme também não se detém em sua experiência pessoal: o jornalista é apenas a porta de entrada que Herzog – desta vez quase sem interferir na história, narrando ou na frente das câmeras – usa para montar seu quebra-cabeças sobre tirania e colonialismo.

Bokassa só aparece em imagens de arquivo, a maioria quando de sua ridícula e faraônica autocoroação imperial; essas cenas, aliás, com trilha musical clássica, são de grande impacto, ao mesmo tempo melancólicas e sombrias, até para quem não conhece direito a história.

Ascensão


Queda
Herzog tentou entrevistar o ditador, que estava preso na época, mas não lhe foi permitido. Isso normalmente seria um problema, mas, como nota a jornalista norte-americana Janet Maslin, “a ausência de Bokassa acaba sendo estranhamente útil ao Sr. Herzog, que caracteristicamente encontra mais no mistério de Bokassa do que no homem real”. ²

Assim, o diretor vai juntando peças sobre Jean-Bédel: o pai de muitos filhos, o assediador de mulheres, o tirano que se achava maior que seus conterrâneos e os executava por qualquer coisa, o (aparente) fantoche nas mãos do imperialismo francês e o (possivelmente) canibal, numa viagem ao coração das trevas.

Obviamente que, assim como em Wodaabe, Die Hirten Der Sonne e outros tantos filmes, Herzog não está nem um pouco em seguir rigores sociológicos e historiográficos na construção de sua obra; inclusive é bom estudar um pouco sobre a ditadura centro-africana antes de ver o filme, uma vez que, segundo o próprio diretor, “Chamar Echos Aus Einem Düsteren Reich de ‘documentário’ é como dizer que a pintura que Andy Wharhol fez das latas de sopa Campbell’s seja um documento sobre sopa de tomate”. ³

O interesse de Herzog evidentemente reside no caráter megalomaníaco de Bokassa, um ditador tão insano quanto seu Aguirre, tão delirante quando seu Fitzcarraldo, e possivelmente tão manipulado quanto seu Cobra Verde. E toda essa loucura e todo esse horror são apresentados não só por meio dos relatos dos locais e das reminiscências de Goldsmith – não esperaríamos algo tão convencional assim do diretor –, mas por imagens tão sombrias, melancólicas e evocativas de pesadelos quanto as cenas de arquivos de Bokassa.

Nas palavras de Janet Maslin: “Ao longo de Echos Aus Einem Düsteren Reich, a câmera do Sr. Herzog tacitamente absorve a loucura do legado de Bokassa e às vezes transforma aquela loucura em visões fascinantes. (...) Uma estátua do ditador jaz enferrujando nas ervas daninhas e um macaco fuma um cigarro com enervante intensidade nas ruínas do zoológico particular do imperador. O pesadelo de um mundo inundado por caranguejos laranja do Sr. Goldsmith é ilustrado literalmente, em cores estranhamente brilhantes”. 4

De fato, todas essas cenas têm muito impacto, especialmente o mar de caranguejos invadindo a paisagem, direto do recorrente sonho do jornalista, logo no início do filme. Mas é a sequência final, com o macaco pedindo um cigarro e fumando, que traz um incômodo que parece demais até para Goldsmith, que permanecia tranquilo em toda a viagem até então.

Mar vermelho-sangue

Como analisa o especialista norte-americano em cinema alemão Brad Prager, “há algo acusatório no olhar do macaco. É como se o primata fosse mais humano que os humanos que fariam tais coisas uns com os outros, aqueles que agiriam como torturadores e canibais. Diferentemente das galinhas [Stroszek e vários outros filmes], dos dromedários [Auch Zwerge Haben Klein Angefangen] e das águas-vivas [Bad Lieutenant, de 2009] nos filmes de Herzog, esse macaco nos pergunta se ainda podemos reconhecer algum traço do que já foi humano em nós mesmos”. 5

Se Bokassa era apenas um palhaço, um ditador reles e ignorante, de perfil sanguinário, como a imprensa ocidental sempre o tratou, ou se era um mero fantoche da França, um capacho metido a napoleão, porém, muito conveniente ao colonialismo, fica por conta de como cada um monta as peças apresentadas por Herzog.

Mas a cena do macaco fumante é inequívoca: “Retoma os aspectos miméticos do filme: a violência colonial – e seus abusos – sempre retorna em uma forma inesperada e assustadora”, como conclui Brad Prager.

A despeito de os relatos, a certa altura, se tornarem um tanto enfadonhos, e de o filme ser bem difícil de ser encontrado por estas plagas (tem no Youtube, com legendas em alemão, e há por aí um torrent em duas partes, com legendas em espanhol), quem gosta de bom cinema deve tentar assistir a este filme, nem que seja apenas pelas sequências inicial e final.

Pois, como diz Janet Maslin sobre o filme, fazendo referência à marcha dos caranguejos (e sobre todo o colonialismo, evidentemente), “o pensamento de uma praga monstruosa e inexorável permanece na memória por muito tempo depois que Bokassa desvanece”.

More human than human

[A partir do próximo post, entraremos no profícuo período noventista de Herzog, com onze filmes em dez anos.]



Curiosidades:

– a sequência com os caranguejos-vermelhos fazendo sua conhecida e impressionante migração anual na Ilha Christmas (próxima a Indonésia, mas pertencente a Austrália) seria reutilizada no final de Invincible (2001);

– apesar de o filme ser feito aparentemente tendo Goldsmith como centro, Herzog o conheceu quando já tinha a ideia do filme;

– Michael Goldsmith, aliás, morreu pouco tempo após o lançamento do filme, devido a uma hemorragia estomacal.



¹ CRONIN, Paul. Werner Herzog: A Guide For The Perplexed. Faber & Faber, 2014.
² 4 http://www.nytimes.com/movie/review?res=9E0CE5DA133CF936A25754C0A964958260.
³ HERZOG, Werner. In: The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth, de Brad Prager. Wallflower Press, 2007.
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.