Alemanha (rodado no Kuwait) | 52min | super 16 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: John G. Person
Montagem: Rainer Standke
Fotografia: Paul Berriff
Música: excertos de Richard Wagner, Edvard Grieg, Serguei Prokofieff, Arvo Part, Giuseppe Verdi, Franz Schubert e Gustav Mahler
Elenco: Werner Herzog (narração em off)
“Uma visão apocalíptica com os poços de petróleo em chamas no Kuwait após a Guerra do Golfo, como um mundo inteiro ardendo em chamas. Este filme é estilizado como ficção científica, uma vez que não há uma única cena em que você possa reconhecer nosso planeta.” ¹
Não é exagero pensar em Lektionen In Finsternis (Lições Da Escuridão) como filme-irmão de Fata Morgana, ou como intui a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, parte de uma trilogia que também inclui The Wild Blue Yonder, que “tornam-se etapas sucessivas de um projeto sobre a ficção científica, perseguindo a ideia do olhar alienígena que nos oferece elementos impensáveis e momentos de reflexão sobre a criação, sobre a vida e sobre a morte”. ²
Enquanto em Fata Morgana viajávamos Saara adentro, contemplativamente, vislumbrando paragens de solidão, ruína, e silêncio sob a narração de trechos do Popol Vuh, aqui, com o diretor narrando trechos apocalípticos inspirados na Bíblia, nos faz mergulhar em um Deserto da Arábia transformado no puro Inferno.
O estudioso norte-americano de cinema Brad Prager situa melhor o filme: “Dito de modo mais claro, é um planeta do sistema solar herzogiano, completo, com montanha e névoa, que surgem logo no começo, como a cortina metafórica que já vimos em tantos trabalhos anteriores dele”. ³
planeta estranho |
Uma grande vantagem do filme é que, ao contrário de outras tentativas (malogradas) de politizar seu cinema, como em Ballade Vom Kleinen Soldaten e Wo Die Grünen Ameisen Träumen, essa opção por não contextualizar os acontecimentos, e mais, ressignificá-los por meio da narração, faz com que, nas palavras do estudioso alemão de cinema Eric Ames, “só a imaginação nos permita testemunhar o que aconteceu com os outros em outro tempo e lugar. Com a paisagem, então, o filme de Herzog apela para a imaginação como uma força contrária ao senso de testemunho que os canais de notícias prometeram, mas falharam em proporcionar”. 4
Em uma guerra, assim como em qualquer evento traumático ao qual só tenhamos acesso via imprensa, sempre haverá inúmeros graus de distorção, naturais da mídia ou impostas pelos poderes que a comandam/influenciam, até que a mensagem chegue até nós.
Brad Prager nota que “o ritmo do filme é lento, e talvez dessa forma ele encene uma crítica sobre como as guerras têm sido transmitidas na tevê a cabo”. 5 Quem tem idade para lembrar da Primeira Guerra do Golfo sabe que a transmissão imposta pelo governo norte-americano mostrava uma guerra sanitizada, cirúrgica, de videogame, em que tudo era visto de longe, infravermelho, sem aparentes danos, feridos ou mortos.
Nisso, a a força bruta das imagens em-si do filme se mostram mais impactantes de entremeadas de horrores belicistas do que qualquer transmissão da CNN à época. Você sequer precisa lembrar desse conflito ou ler sobre ele para se sentir dentro das chamas infernais, em um espetáculo flamejante sob trilha de música clássica que lembra, em muitos momentos, as cenas mais catárticas e surreais de Apocalypse Now (1979), de Coppola (fã de Herzog, aliás, como dito aqui).
Os primeiros minutos, um sobrevoo sobre as planícies desoladas do Kuwait, são mais ‘tranquilos’, lembrando um Fata Morgana mais depressivo, dado o peso da trilha sonora clássica. Logo, porém, uma mulher cujos filhos foram mortos na sua frente, o que a fez perder a voz, tenta se comunicar. Então, mais passagens arruinadas cheias de tristeza e pesar. A escuridão, no caso o óleo negro, permeia e cobre tudo. E então, sob a narração apocalíptica de Herzog, surgem os tais poços flamejantes. E outro depoimento de mãe de família, cujo filho pequeno, após uma rude e violenta abordagem do exército americano, deixou de falar, dado o trauma. A seguir, ao fim do mundo, de tantos mundos, ferve no inferno do petróleo incinerando, ruidoso, enquanto os bombeiros trabalham para extingui-lo. Na sequência, paisagens cobertas de óleo, sob trilha erudita inclemente e tristonha. E vem o capítulo seguinte, talvez o mais impressionante, com o petróleo fervente, borbulhante, crepitante, escorrendo viscoso feito lava de um vulcão. Segue-se o trabalho de operários em meio àquele inferno, em uma surpreendente trilha menos desoladola. E, por fim, uma sequência de imagens que, de certa forma,faz um apanhado de toda a projeção. Um fim sem qualquer redenção.
Como analisa Grazia Paganelli: “Como ver o mundo pela primeira vez, diria Herzog, mas de um olho completamente desabituado aos nossos sinais e aos modos de pensar do nosso olhar, um pouco daquilo que aconteceu a Kaspar Hauser, mas amplificado e teorizado até as consequências mais extremas. Nasce deste sentimento das imagens o pensamento de um filme de ficção científica, (...) o olhar puro de nós a vir nos olhar para nos contar que coisas vê e como. (...) São alusões, por vezes dolorosas, por vezes cheias de ironia, em filmes que, da observação transfigurada de uma realidade física e objetiva, arriscam inventar uma narrativa capaz de aludir a realidades, pelo contrário, imaginárias”. 6
Aqui temos Werner Herzog fazendo o que sabe fazer melhor: verdade extática em estado puro, uma experiência sensorial cheia de força e tristeza, o retrato de toda uma existência coletiva que não deu certo, diante de uma natureza em ruínas, mas ainda inclemente. Ouso dizer que é seu melhor filme desde Fitzcarraldo: após uma década errática, em que o diretor buscou novos rumos para seu trabalho, já mais imerso no mainstream, e nem sempre foi muito feliz, aqui ele retoma a grande forma.
Mas, enfim, a melhor definição deste filme é dada por Paul Cronin: “ao contrário de La Soufrière, que tenta documentar uma catástrofe natural, Lektionen In Finsternis é um réquiem para um planeta que nós mesmos destruímos”.
Curiosidades:
– a citação que abre o filme, creditada a ao filósofo e matemático francês Blaise Pascal (1623–1662), pra variar, é de autoriza do próprio Herzog: “É inventado, mas não é falsificação. É uma possibilidade de um momento de iluminação antes do filme”. 7
– apesar de ser bem recebido na Inglaterra e nos Estados Unidos, o filme sofreu muitas críticas na Alemanha à época, que acusaram o diretor de estetizar o horror da guerra, ao não identificar claramente o Kuwait e sua situação, ou de se posicionar claramente contra a guerra: “Eles disseram que o filme era perigosamente autoritário, então eu decidi ser autoritário no meu melhor. Eu estava diante deles e disse: ‘Sr. Dante fez o mesmo em seu Inferno e o Sr. Goya fez isso em suas pinturas, e Brueghel e Bosch, também.’ 'Você deveria ter ouvido o barulho”. 8
– entre Schrei Aus Stein e este Lektionen In Finsternis, um canal de tevê austríaco transmitiu em quatro partes de 60min, sob o nome Film Lesson, uma série de encontros sobre cinema dos quais Herzog participou durante o Festival de Viena de 1991; aparentemente só existem com áudio e legendas em alemão, de modo que nem tentei vê-los;
– por este filme, Herzog venceu o grande prêmio do Festival Internacional de Melbourne de 1993;
– a princípio, o canal de tevê alemão Premiere, que financiou o filme, convidou Herzog para fazer um filme sobre o bombeiro texano especializado em combater incêndios em postos de petróleo (inclusive no Kuwait) Red Adair (1915–2004), ao que o diretor declinou, porém, fazendo a contraproposta, aceita pela emissora, de fazer um tipo diferente de filme no Golfo Pérsico;
– uma vez que as chamas nos poços logo se extinguiriam, o projeto precisava ser tocado com urgência, então Herzog designou o produtor, fotógrafo cineasta inglês Paul Berrif, com larga experiência em documentários de ação e já possuidor de uma licença para filmar no país, a fim de já captar algumas cenas antes mesmo da chegada do alemão;
– a equipe chegou ao Kuwait em outubro de 1991, um mês antes que as chamas do último poço fossem apagadas, e o filme inteiro foi rodado em uma semana.
² 6 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
³ 5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 AMES, Eric. Ferocious Reality: Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press,
2012.
7 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI233888-15220,00.html
2012.
7 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI233888-15220,00.html
8 HERZOG, Werner. In.: Ferocious Reality: Documentary According To Werner Herzog, de Eric Ames. University Of Minnesota Press, 2012.
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