Alemanha (rodado na Alemanha, na Lituânia, na Holanda, na Holanda e em Christmas Island (Austrália) | 130min | 35 mm| cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer
Som: Ian Fuller
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Hans Zimmer e Klaus Badelt (e excertos de excertos de Händel e Beethoven)
Elenco: Tim Roth (Hanussen), Jouko Ahola (Zishe Breitbart), Anna Gourari (Marta Farra), Jacob Vein (Benjamin Breitbart), Max Raabe (mestre de cerimônias), Gustav Oeter Woehler (Alfred Landwehr), Udo Kier (Conde Helldorf), Herb Golder (Rabino Edelmann), Gary Bart (Ytzak Breitbart), Renata Krogner (Senhora Breitbart)
“Invincible é provavelmente o único filme sobre a Alemanha e os nazistas que não termina inevitavelmente com o Holocausto.” 1
Há artistas, muitas vezes geniais, que não sabem lidar direito com narrativas tradicionais. Clarice Lispector (1920–1977) é um exemplo: suas narrativas com começo, meio e fim, como A Maçã No Escuro e O Lustre, são pálidas perto do melhor de sua obra, feito Àgua Viva e A Paixão Segundo GH.
O mesmo ocorre com Werner Herzog: o melhor de sua obra ficcional está em instantâneos como Aguirre, Der Zorn Gottes, ou na narrativa episódica de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle; é fácil ver que filmes mais convencionais como Wo Die Grünen Ameisen Träumen ou mesmo Fitzcarraldo (para além do absurdo da própria existência do filme) sofrem com a mão pesada e aparente preguiça do diretor para desenvolver personagens e diálogos.
Então, sabe-se lá por quê, o alemão vem com este Invincible, provavelmente sua obra mais convencional, quase careta, a despeito da história (baseada em fatos reais) interessante: Zishe Breitbart, um ferreiro judeu polonês, enorme, forte e loiro (e, digamos assim, um tanto limitado intelectualmente), é usado pelo inescrupuloso e megalomaníaco Hanussen, célebre ilusionista/hipnotizador judeu austríaco simpatizante do nazismo, para um freakshow teatral em Berlim, sob o pseudônimo wagneriano Siegfried e com uma indumentária ridícula de bárbaro, diante de um público declaradamente antissemita – até que Zishe se rebela, diante dos nazistas, se afirma judeu (nomeando a si mesmo como Sansão) e acaba se tornando um símbolo para seus patrícios já tão oprimidos na Alemanha de 1932.
Ótima história, certo? O problema, tal como em Wo Die Grünen Ameisen Träumen, é o jeito frouxo como a história se desenvolve, com diálogos risíveis e situações inverossímeis, ao mesmo tempo em que a mão herzogiana pesa o tempo todo, não deixando o filme fluir – pior, caminha lenta e previsivelmente para um final lamentável. Além disso, as motivações dos personagens, especialmente de Hanussen (em tese, um bom personagem, um judeu que odeia sua origem e lucra com o sofrimento de seus iguais), são falhas: por que escolher um judeu para seu show? E a própria atuação de Tim Roth é bastante exagerada, o que acaba por nos fazer cansar do personagem mais interessante do filme.
A performance do protagonista também não ajuda, como atesta esta crítica anônima publicada no Estadão, à época do lançamento do filme: “O problema é a falta de funcionalidade do personagem criado para o gigante Zishe (Jouko Ahola). Unidimensional, não lembra em nada os seres contraditórios, multifacetados da galeria de Herzog, como Aguirre ou Fitzcarraldo, de obras anteriores. Enfim, não é sempre que se trabalha com um ator como Klaus Kinski, mas a verdade é que a complexidade de um personagem é também responsabilidade do diretor”. 2
Zishe em ação |
A
maior parte da crítica malhou o filme, pelos mesmos motivos que eu, mas
há críticos – especialmente os sabidamente fãs do alemão (e
frequentemente usados como fonte por mim) que foram da condescendência
ao verdadeiro entusiasmo com a obra.
A performance de Jouko Ahola foi elogiada pela estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, que afirma que “Olhamos profundamente para um homem que não tem educação e que nunca experimentou o mundo exterior. Mas, claro, está embebido de cultura judaica e vem de um contexto muito bem definido e sólido. (...) Quando olho para ele tenho sempre a sensação de que a audiência o adora porque há algo de muito sólido e arcaico nele. Veem-no como um homem decente, um bom homem, sólido e gentil. (...) Há algo de inacabado, de não formado, nele.” 3Já o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) exagera bem: “Quanto a Jouko Ahola, esse ator inexperiente, que parece por natureza ser bondoso e descomplicado, pode nunca mais atuar, mas encontrou o papel perfeito, como Maria Falconetti fez n’A Paixão De Joana d'Arc". 4
A (razoável) complexidade de Hanussen e sua relações com Zishe também são elogiadas, desta vez pelo estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager: “Hanussen engaja-se em uma abnegação oportunista que Herzog retrata como apenas um pequeno passo de uma negação das necessidades daqueles à sua volta; a decisão de Hanussen de deixar isso de lado é parte constitutiva de sua decisão de negar os direitos dos outros.” 5 (...) “Além disso, ao apresentar Hanussen e Breitbart não como rivais, mas como colegas, as duas figuras funcionam como contraponto uma da outra, tipificando duas respostas possíveis ao antissemitismo dos 1930s”. 6
O estudioso norte-americano de cinema Paul Cronin complementa: “Enquanto Zishe influencia as pessoas pela força de seu corpo, Hanussen manipula as audiências por meio do poder da imaginação, e a colisão dessas duas faz um forte choque dramático”. 7
O final do filme, anticlimático, também foi elogiado por Brad Prager: “O filme é excepcional em sua disposição de oferecer um final que não seja de modo nenhum redentor. Embora Breitbart tenha visto a verdade, ele passou a entender, mais do que qualquer outra coisa, a disposição básica por parte dos alemães de se envolver em violência contra os judeus. 8 (...) Embora o filme não conduza ao Holocausto, (...) oferece uma perspectiva sobre a desumanização dos judeus no período anterior à guerra e é diferente dos filmes que só revelariam uma feliz harmonia entre alemães pré-guerra e judeus”. 9
A performance de Jouko Ahola foi elogiada pela estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, que afirma que “Olhamos profundamente para um homem que não tem educação e que nunca experimentou o mundo exterior. Mas, claro, está embebido de cultura judaica e vem de um contexto muito bem definido e sólido. (...) Quando olho para ele tenho sempre a sensação de que a audiência o adora porque há algo de muito sólido e arcaico nele. Veem-no como um homem decente, um bom homem, sólido e gentil. (...) Há algo de inacabado, de não formado, nele.” 3Já o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) exagera bem: “Quanto a Jouko Ahola, esse ator inexperiente, que parece por natureza ser bondoso e descomplicado, pode nunca mais atuar, mas encontrou o papel perfeito, como Maria Falconetti fez n’A Paixão De Joana d'Arc". 4
A (razoável) complexidade de Hanussen e sua relações com Zishe também são elogiadas, desta vez pelo estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager: “Hanussen engaja-se em uma abnegação oportunista que Herzog retrata como apenas um pequeno passo de uma negação das necessidades daqueles à sua volta; a decisão de Hanussen de deixar isso de lado é parte constitutiva de sua decisão de negar os direitos dos outros.” 5 (...) “Além disso, ao apresentar Hanussen e Breitbart não como rivais, mas como colegas, as duas figuras funcionam como contraponto uma da outra, tipificando duas respostas possíveis ao antissemitismo dos 1930s”. 6
O estudioso norte-americano de cinema Paul Cronin complementa: “Enquanto Zishe influencia as pessoas pela força de seu corpo, Hanussen manipula as audiências por meio do poder da imaginação, e a colisão dessas duas faz um forte choque dramático”. 7
O final do filme, anticlimático, também foi elogiado por Brad Prager: “O filme é excepcional em sua disposição de oferecer um final que não seja de modo nenhum redentor. Embora Breitbart tenha visto a verdade, ele passou a entender, mais do que qualquer outra coisa, a disposição básica por parte dos alemães de se envolver em violência contra os judeus. 8 (...) Embora o filme não conduza ao Holocausto, (...) oferece uma perspectiva sobre a desumanização dos judeus no período anterior à guerra e é diferente dos filmes que só revelariam uma feliz harmonia entre alemães pré-guerra e judeus”. 9
Hanussen em ação |
Grazia Paganelli aparentemente procura ler o epílogo à luz das lendas e profecias judaicas: “Depois da viagem, da descoberta e da perda, o jovem judeu Zishe regressa à casa mais forte e mais seguro, com uma verdade urgente para comunicar a todos (Hitler vai subir ao poder, com efeitos que já prevê devastadores para o seu povo). Completa, assim, uma reunião consigo próprio com aquela parte esquecida e trazida de novo à vida como um sonho, ponto de chegada pré-anunciado desde os primeiros momentos”. 10
E quanto à impactante cena com os caranguejos de Christmas Island, Roger Ebert interpreta assim: “Eu acho que essa cena pode representar as hordas nazistas emergentes, mas é claro que não pode haver tradução literal. Talvez Herzog queira ilustrar a luta darwinista implacável da qual o homem pode se levantar com bom coração e propósito”. 11
Enfim, claro que há coisas boas no filme, como a fotografia e a trilha sonora; além disso, Zishe, em sua ingenuidade e inadequação ao mundo e às suas normas, tem um pouco de Bruno S (de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle e Stroszek), e é ótimo contraponto entre Hanussen ter supostamente previsto a ascensão de Hitler e Zishe ter seu destino teoricamente previsto por um rabino – na prática, a dizimação de seu povo. E, vá lá, se você pensar no personagem de Tim Roth como um arquétipo mefistotélico, até que ele funciona bem.
Porém, foi pouco para despertar meu interesse pelo filme, de modo que foi bem difícil transpor suas mais de duas horas de duração. O gentle giant de Invincible não tem a profundidade intrínseca, com medos e contradições, dos grandes personagens de Herzog. É tudo, como sempre, muito honesto e sincero – e as críticas acima mostram que tudo no filme foi bem pensado, que tentou-se amarrar as coisas, mas nem sempre isso é o bastante, às vezes o resultado final não corresponde aos planos iniciais.
Enfim: Herzog, tente não fazer mais filmes convencionais, OK?, e até a próxima.
Curiosidades:
– algumas liberdades históricas foram tomadas em prol da história, como a junção das histórias de Zishe (que na verdade performou na década anterior, nos 1920s) e de Hanussen (este sim, na época correta); como disse o próprio diretor, “Breitbart foi basicamente uma personalidade do showbizz, não muito mais que isso”; 12
Sobre Hanussen, que teria previsto a ascensão de Hitler, Herzog explica que “na realidade, ele fez algo que todos os videntes fazem - apostou em todos os cavalos, prevendo as vitórias de Schleicher, Brüning e von Papen também, e, depois da eleição, ele apontou apenas para o parágrafo que escrevera sobre a vitória de Hitler”.
– o finlandês Jouko Ahola, que faz o papel de Zeishe, tem dois títulos de “Homem Mais Forte do Mundo” e mais dois de “Homem Mais Forte da Europa”, todos dos 1990s;
– a sequência com os caranguejos-vermelhos fazendo sua conhecida e impressionante migração anual em Christmas Island (próxima a Indonésia, mas pertencente a Austrália) já havia sido utilizada em Echos Aus Einem Düsteren Reich;
– a figura de Zishe, o gigante servil, de bom coração e com dificuldade de se expressar, é uma clara alusão ao mito judeu do golem (que, em alguma narrativas, também defende os judeus oprimidos nos guetos);
– o gentle giant também faz alusão à lenda talmúdica dos lamed-vav, os 36 homens verdadeiramente justos sobre a Terra a cada geração (Zishe seria um desses), quando é instruído pelo rabino;
– o orçamento do filme foi de US$ 6 milhões e o roteiro foi escrito em nove dias;
– há outros dois filmes sobre Hanussen, epônimos, sendo o primeiro dos austríacos OW Fischer (1915–2004) e Georg Marischka (1922–1999), de 1955, e o mais famoso, de 1988, feito pelo húngaro István Szabó (1938–), famoso por Mephisto (1981), de temática algo similar a Invincible;
– a cena de Hansusen em uma mesa circular, rodeado de pessoas, é recriação de uma sequência de Dr. Mabuse (1922), de Fritz Lang (1890–1976);
– o visual e o gestual do personagem de Tim Roth foi inspirado no protagonista do livro Mario And The Magician (1929), do alemão Thomas Mann (1875–1955), em que o ilusionista claramente simboliza o poder de manipulação do nazifascismo;
– Invincible é citado em um diálogo do curta The Debridement In Rome (2012), de Feliz Else;
– a russa Anna Gourari, que interpreta Marta Faria, é uma renomada pianista, e tocou realmente em todas as suas cenas ao piano;
– Hans Zimmer, que criou parte da trilha sonora, resolveu que ia ser um compositor de músicas para filmes após assistir a Fitzcarraldo;
– dois minutos após a cena da hipnose, o diretor de fotografia começou a balançar e sua cabeça pendeu para trás, no Herzog agarrou-o e colocou-o suavemente de volta trás da câmera, onde continuou – e Tim Roth também foi realmente capaz de hipnotizar a jovem mulher, e é como a vemos no filme, despertando do transe;
– a voz na plateia, ouvida logo antes de Zishe levantar 900 libras, pertence a Werner Herzog;
– quando perguntado, em uma entrevista, sobre a escolha de atores não-profissionais [mesmo como protagonistas], Herzog respondeu que teria que interromper o entrevistador, porque “não existem atores não profissionais; existem os bons e os maus”; 13
– uma idosa que morava em uma das casas perto de onde foram filmadas as cenas do mercado, uma vez saiu com uma sacola de compras e, embora o diretor Werner Herzog tenha dito que era apenas um set de filmagem (não havia mercado ali fazia 70 anos), insistiu em “fazer compras” e interrompeu as gravações durante 15 minutos, no que Herzog pensou que “estava fazendo um bom trabalho [com o filme]”; 14
– Herzog queria um rabino de verdade no papel de Edelmann, mas, como não havia nenhum disponível que servisse ao cronograma do filme, acabou ‘sobrando’ para o assistente de direção, Herb Golder, que precisou ficar algumas semanas sem se barbear;
– a equipe levou semanas para negociar com a comunidade judaica da pequena cidade de Vilnus, na Lituânia, a fim de filmar na sinagoga local (“a única em mais de cem que sobreviveu à investida nazista” 15); segundo Herzog. Os moradores locais foram inicialmente resistentes à ideia (“Um cineasta alemão poderia realmente retratar a vida e os rituais judaicos de maneira digna?” 16), mas acabaram autorizados a filmar lá, “e muitos dos extras em Invincible são genuínos congregantes da sinagoga” 17).
1 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
2 https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,herzog-apresenta-seu-gigante-zishe,20021021p1596
3 10
PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di
Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 11 EBERT, Roger. In.: https://www.rogerebert.com/reviews/invincible-2002
5 6 8 9 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
7 15 16 17 CRONIN, Paul. Werner Herzog: A Guide For The Perplexed. Faber & Faber, 2014.
12 14 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
13 HERZOG, Werner. In.: http://www.indiewire.com/2002/09/interview-strong-man-on-a-mission-werner-herzog-talks-about-invincible-80201
5 6 8 9 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
7 15 16 17 CRONIN, Paul. Werner Herzog: A Guide For The Perplexed. Faber & Faber, 2014.
12 14 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
13 HERZOG, Werner. In.: http://www.indiewire.com/2002/09/interview-strong-man-on-a-mission-werner-herzog-talks-about-invincible-80201
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