Alemanha (filmado na Amazônia Peruana) | 93min | 35 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch, Francisco Joan, Orlando Macchiavello
Som: Herbert Prasch
Música: Florian Frickle (Popol Vuh)
Elenco: Klaus Kinski (Dom Lope de Aguirre), Helena Rojo (Inez de Atienza), Del Negro (Carvajal), Ruy Guerra (Ursua), Peter Berling (Guzman), Cecilia Rivera (Flores), Daniel Ades (Perucho), Armando Polanah (Armando), Edward Roland (Okello), Daniel Farfan, Julio Martinez, Alejandro Repullés (índios da Cooperativa Socialista de Lauramarca, no Peru)
"De certa forma, fazendo Aguirre... me propus a criar algo de um filme comercial, certamente em comparação com Lebenszeichen e Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit. O filme foi sempre destinado ao público em geral, e não estritamente a fãs de filmes de arte. Depois de olhar para meus filmes anteriores, ficou bastante claro que eu vinha servindo apenas a um nicho de mercado, e com Aguirre fiz um esforço consciente para chegar a um público mais vasto. (...) Na época, achava que o filme era uma espécie de teste pessoal para mim. Se falhasse, sabia que nunca seria capaz de fazer qualquer coisa que pudesse ser vista ampla e internacionalmente, e que eu teria que voltar a filmes como Lebenszeichen. O filme foi um teste da minha marginalidade." ¹
Eis que temos a primeira obra-prima de Werner Herzog, o filme que o tornou mundialmente conhecido (como diretor cult, claro).
Primeira das cinco parcerias entre Herzog e o ator Klaus Kinski, Aguirre, Der Zorn Gottes (Aguirre, A Cólera Dos Deuses) mistura ficção e historicidade para contar a malograda expedição de Gonzalo Pizarro (irmão de Francisco) em busca do mítico Eldorado, em 1560, na Amazônia Peruana. A continuidade da missão, rio adentro, é confiada a Dom Pedro de Ursua e Dom Lope de Aguirre; este acaba tomando o poder do grupo e lançando a todos numa espiral de caos e morte, até o final insanamente apoteótico (apoteoticamente insano).
“Se
eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos das árvores, os
pássaros cairão mortos das árvores. Eu sou a cólera dos deuses.” ²
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A narrativa do filme, livremente inspirada na obra Relación Del Nuevo Descubrimiento Del Famoso Río Grande Que Descubrió Por Muy Gran Ventura El Capitán Francisco De Orellana, do missionário espanhol Frei Gaspar de Carvajal (1504–1584), traz dois pontos-chave da mitologia herzogiana: a natureza hostil e o fracasso humano.
Fui breve na descrição da história porque ela nem importa muito no final das contas: basta saber que é mais uma parábola sobre obsessão e frustração levada a cabo por um protagonista insano e deslocado, tentando inutilmente se debater contra a natureza e a Criação.
É a tal da ‘verdade extática’ de que Herzog tanto fala: em vez de um grande roteiro bem amarradinho, cenas épicas de lutas ou uma narrativa de grande acuidade histórica, o diretor se interessa por algo maior, mais profundo e intuitivo, um mergulho nos desvarios da humanidade que alimentam delírios grandiloquentes até que a existência as esmague implacavelmente.
O próprio diretor explica melhor: "A História está geralmente do lado dos vencedores, e Aguirre é um dos grandes perdedores da História. (...) A expedição de Aguirre é claramente fadada ao fracasso desde o início. Sabemos que isso - até mesmo antes de o filme começar - quando lemos que Eldorado é uma mera invenção dos índios. Então sabemos que o que essas pessoas estão buscando é praticamente a mecânica da derrota e da morte. Às vezes me parece que Aguirre está deliberadamente levando seus soldados para a destruição. É como uma tragédia grega, no final é óbvio que ele trouxe esses horrores sobre si mesmo. Aguirre se atreve a desafiar a natureza, de tal forma que a natureza, inevitavelmente, vai se vingar dele".³
“Trabalhar com Marlon Brando devia ser um jardim da infância em comparação com Kinski.” 4 |
Assim acompanhamos essa expedição de puro delírio rumo ao nada. Ícaro, Prometeu, Terceira Margem do Rio, Coração das trevas... somam-se as loucuras da própria história, na natureza selvagem, do diretor obsessivo – aqui surge a lenda do realizador que põe em risco a própria vida e a de sua equipe, ameaça atores de morte, usa câmeras e animais roubados –, principalmente, de Klaus Kinski, que se agiganta neste filme, com seus olhos profundamente azuis, seu jeito esquizofrênico e seu feio rosto anguloso, tal como Fini Straubinger se impos em Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit.
Kinski, com quem Herzog manteve a vida inteira uma relação de amor & ódio, se irritava com mosquitos, com a chuva, com a equipe, com os outros atores, gritava com todo mundo e exigia privilégios como água mineral, enquanto todos bebiam água da chuva, e ia dormir no hotel mais próximo da região (sim, era bem longe). Após uma das infindáveis discussões com o diretor (a quem chamava, pejorativamente, de ‘Diretor dos Anões’, por causa de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen), Kinski arrumou suas coisas e disse que ia embora.
Herzog nos conta o que se seguiu: “Fui até ele calmamente e disse: ‘Você não pode fazer isso; Você não pode deixar o filme antes que ele esteja terminado. O filme é mais importante do que nossos sentimentos pessoais É mais importante até do que nossas vidas privadas. Não é aceitável que você faça isso’. Disse a ele que tinha um rifle e ele não chegaria à curva seguinte do rio antes que tivesse oito balas na cabeça; A nona seria pra mim. (...) Ele sabia que eu estava falando sério, e pelos dez dias restantes de filmagem ele foi muito doce e bem-comportado”. ³
“Claro, o sujeito era uma completa pestilência e um pesadelo para se trabalhar junto, mas quem se importa? O importante são os filmes que fizemos juntos.” 5 |
Não deixe de ver e rever esse grande clássico do cinema. É o primeiro filme absolutamente obrigatório deste blog. Você vai presenciar o nascimento de dois mitos, um diretor e um ator, que cometerão os maiores absurdos nas duas décadas seguintes e terão seu nome inscrito em qualquer panteão artístico ‘badass’. Aparentemente, e só aparentemente, há menos questões profundíssimas do Ser envolvidas, mas é só porque a abordagem cinematográfica é mais convencional (para os padrões herzogianos). Pare o que estiver fazendo (incluindo ler este texto) agora veja este filme.
Curiosidades:
– O filme custou módicos US$ 370.000, sendo um terço disso o cachê de Klaus Kinski. Filmado em apenas cinco semanas (em ordem cronológica, o que explica muito do tom documental da história), sem nenhum storyboard. O segredo da economia foi uma cuidadosa e detalhada pré-produção de nove meses.
– Boa parte do roteiro foi escrita durante uma viagem ébria de 320 km num ônibus que levava o time de futebol de Herzog para uma partida em Viena (Áustria). Um dos jogadores bêbados teria inclusive vomitado no script.
– Entre as habituais cenas que não têm necessariamente a ver com o filme, mas que Herzog encontra pelo caminho e resolve filmar e colocar na película, temos uma adorável preguiça-bebê.
– Aguirre... teve recepção fria na Alemanha, até por conta da pouca divulgação, mas tornou-se cult no resto do mundo, e até hoje é um de seus filmes mais conhecidos.
– Percebeu semelhanças entre Aguirre... e Apocalypse Now? Pois não é por acaso. Coppola admite: "Aguirre, com seu imaginário incrível, foi uma influência muito forte. Eu seria negligente se não mencionasse isso" 6. E dez anos depois, Herzog escreveria o roteiro de Fitzcarraldo em oito dias, na casa de Coppola em São Francisco.
– Dos incidentes causados por Kinski, dois foram mais graves: primeiro acertou com uma espada a cabeça de um companheiro de cena na balsa. E este só sobreviveu porque estava usando capacete. Depois, após um dia de filmagens, começou a atirar a esmo com uma espingarda Winchester, e acabou acertando o dedo de um figurante. A arma foi confiscada por Herzog, que a mantém guardada até hoje.
¹ ³ 4 5 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber. 2000
² Quote do filme
² Quote do filme
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