Alemanha (filmado na Alemanha e na Eslovênia) | 47min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein, Francisco Joan, Frederik Hettich, Alfred Chrosziel, Gideon Meron
Som: Benedict Kuby
Música: Florian Frickle (Popol Vuh)
Elenco: Walter Steiner
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein, Francisco Joan, Frederik Hettich, Alfred Chrosziel, Gideon Meron
Som: Benedict Kuby
Música: Florian Frickle (Popol Vuh)
Elenco: Walter Steiner
“Sempre senti que Steiner foi um irmão próximo de Fitzcarraldo, um homem que também desafia as leis da gravidade puxando uma embarcação montanha acima.” ¹
Lembra da primeira cena de Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, em que um esquiador ‘voava’ sob a narração de Fini Straubinger? Pois aquela cena audaciosa é uma performance de Walter Steiner, o protagonista deste Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner ("O Grande Êxtase Do Entalhador Steiner"), filme feito para a série televisiva Grenzstationen ("Postos De Fronteira"), da tevê alemã, sobre situações extremas.
O suíço Steiner, campeão de saltos de esqui, é também, nas horas vagas, entalhador de esculturas de madeira (e trabalha formalmente como carpinteiro), e este documentário, feito a pedido de uma rede de tevê alemã, mostra o contraste entre suas proezas heroicas, desafiando a gravidade e a morte, quebrando recordes atrás de recordes, e sua timidez e introspecção quando em seu ateliê, esculpindo suas obras, que, como ele mesmo diz, são feitas sem predeterminação e refletem as tensões do seu meio – exatamente como a vida.
Tímido, retraído (sempre olhando para baixo), até um pouco bobo, desajeitado, e sempre sozinho (física e espiritualmente), ele o tempo todo dá a impressão de não ligar para aqueles recordes todos, ou para as pessoas que vão vê-lo e aplaudi-lo – na verdade, ele sente a pressão por novas marcas incríveis, ou para que acabe se estropiando num acidente (com, aliás, acontece no filme). Como tantos heróis herzogianos, ele não parece pertencer àqueles lugares, aliás, a nenhum lugar que não o céu que o abriga nos instantes em que ele parece voar com seus esquis.
O entalhador Steiner e o esquiador Steiner são artistas solitários que se apropriam da natureza – inclusive ele faz seus próprios esquis –, e essa luta mítica de um homem só contra o meio é um dos temas centrais da obra herzogiana. Não por acaso, foi escolhido um personagem taciturno que trabalha em duas atividades essencialmente solitárias, individuais, em que sucessos e fracassos repousam unicamente sobre os ombros de quem as pratica.
Por isso, o diretor não se interessa em contextualizar a carreira de Steiner, nem antes, nem durante, nem depois – tudo que você sabe é que ele era uma criança que sempre teve o sonho de voar. A ideia é recortar a realidade de modo que os feitos do esquiador-entalhador pareçam ainda mais épicos, pois surgidos do nada. É a construção cuidadosa de um mito moderno por parte de Herzog; Steiner é muito uma criação do diretor.
Confesso que estava prestes a escrever uma resenha desinteressada sobre o filme, que eu estava vendo aos poucos, dado ao excesso de trabalho, mais compromissos pessoais, e ainda as festas de final de ano. Algo do tipo “Herzog preguiçoso, sob encomenda, deve interessar somente aos fãs de esqui”. Porém, hoje, vendo a metade final da obra, percebo uma vez mais o quanto o cinema de Werner Herzog é especial em sua capacidade de supreender, inquietar, de buscar sempre o não-óbvio que soe ao mesmo tempo natural e grandioso.
Na reta final da obra, após mais uma premiação (em que, numa cena particularmente reveladora, o amplo sorriso de Steiner para as câmeras enanesce num instante, revelando sua solitude), Steiner menciona um corvo que ele tinha quando criança (provavelmente encontrado órfão e recolhido ainda pequeno por ele). Era seu único amigo, inclusive o esperando voltar da escola, no caminho de volta, numa amizade embaraçada. Porém, provavelmente devido à alimentação (pão e leite), ele começou a ficar fraco, perder as penas e não conseguir mais voar. Isso fez com que os outros corvos começassem a atacá-lo, ferindo-o tanto que o jovem Steiner foi obrigá-do a sacrificá-lo, “porque era uma tortura ver como ele era molestado por seus iguais por não conseguir mais voar”. E então um sorriso amarelo, o último, entre o conformado e o desapontado, encerra a fala.
Steiner era o corvo que tentava voar para que seus iguais não o machucassem. E então eu precisei reescrever o texto porque estava diante de um Herzog legítimo, de boa cepa, e aprendi que jamais devia subestimar aquele alemão maluco, que nunca devia ter ideias preconcebidas sobre sua obra.
E, ao som do Popol Vuh e com as imagens de mais um salto, ampliado até a distorção da cena, como pano de fundo, surge uma citação, supostamente de Steiner, mas que na verdade é inspirada em textos do escritor suíço Robert Walser (1878–1956), e que revela a condição não apenas do protagonista, mas de toda a humanidade:
“Eu deveria estar sozinho no mundo. Eu mesmo, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Sem sol, sem cultura, apenas eu mesmo, nu em uma pedra alta. Sem tempestade, sem neve, sem bancos, sem dinheiro, sem respiração. E então eu não sentiria mais medo”.
Curiosidades:
– O orçamento de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner foi de aproximadamente US$ 50.000.
– Para o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2913), Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner é "o mais emblemático filme da carreira de Herzog". E o próprio Herzog o considera “definitivamente um de seus mais importantes filmes”. ²
– O tal “grande êxtase”, segundo o diretor, é algo que apenas quem já saltou de esqui pode experimentar. “Você pode ver isso nos rostos dos saltadores no filme, enquanto eles varrem a tela em velocidade, bocas abertas, aquela incrível expressão na face”. ³
– Uma das táticas para fazer com que Walter Steiner se soltasse um pouco diante das câmeras (sim, ele era ainda mais retraído do que aparece na tela), foi, numa noite após as filmagens, e com ajuda da equipe de filmagem, agarrá-lo, colocá-lo em seus ombros e sair correndo pelas ruas com ele. Quando Steiner perguntou por que ele estava fazendo aquilo, Herzog respondeu: “Porque eu sei que não há ninguém maior do que você nesse esporte” 4.
– Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner é o primeiro filme no qual Werner Herzog aparece diante das câmeras, como repórter.
– A história do corvo é verídica, e Herzog a descobriu quando, em contato com os familiares de Steiner, encontrou uma foto dele, quando criança, com a ave. Segundo o diretor, levou três dias para que o entalhador-esquiador concordasse em contá-la, tal a carga emocional que aquilo trazia.
¹ ³ 4 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2000.
² EBERT, Roger. Roger Ebert's Four-Star Reviews (1967–2007). Andrews McMeel Publishing, 2008.
Lembra da primeira cena de Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, em que um esquiador ‘voava’ sob a narração de Fini Straubinger? Pois aquela cena audaciosa é uma performance de Walter Steiner, o protagonista deste Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner ("O Grande Êxtase Do Entalhador Steiner"), filme feito para a série televisiva Grenzstationen ("Postos De Fronteira"), da tevê alemã, sobre situações extremas.
O suíço Steiner, campeão de saltos de esqui, é também, nas horas vagas, entalhador de esculturas de madeira (e trabalha formalmente como carpinteiro), e este documentário, feito a pedido de uma rede de tevê alemã, mostra o contraste entre suas proezas heroicas, desafiando a gravidade e a morte, quebrando recordes atrás de recordes, e sua timidez e introspecção quando em seu ateliê, esculpindo suas obras, que, como ele mesmo diz, são feitas sem predeterminação e refletem as tensões do seu meio – exatamente como a vida.
Steiner, o próprio pássaro esculpido |
Tímido, retraído (sempre olhando para baixo), até um pouco bobo, desajeitado, e sempre sozinho (física e espiritualmente), ele o tempo todo dá a impressão de não ligar para aqueles recordes todos, ou para as pessoas que vão vê-lo e aplaudi-lo – na verdade, ele sente a pressão por novas marcas incríveis, ou para que acabe se estropiando num acidente (com, aliás, acontece no filme). Como tantos heróis herzogianos, ele não parece pertencer àqueles lugares, aliás, a nenhum lugar que não o céu que o abriga nos instantes em que ele parece voar com seus esquis.
O entalhador Steiner e o esquiador Steiner são artistas solitários que se apropriam da natureza – inclusive ele faz seus próprios esquis –, e essa luta mítica de um homem só contra o meio é um dos temas centrais da obra herzogiana. Não por acaso, foi escolhido um personagem taciturno que trabalha em duas atividades essencialmente solitárias, individuais, em que sucessos e fracassos repousam unicamente sobre os ombros de quem as pratica.
Solitude Standing |
Por isso, o diretor não se interessa em contextualizar a carreira de Steiner, nem antes, nem durante, nem depois – tudo que você sabe é que ele era uma criança que sempre teve o sonho de voar. A ideia é recortar a realidade de modo que os feitos do esquiador-entalhador pareçam ainda mais épicos, pois surgidos do nada. É a construção cuidadosa de um mito moderno por parte de Herzog; Steiner é muito uma criação do diretor.
Confesso que estava prestes a escrever uma resenha desinteressada sobre o filme, que eu estava vendo aos poucos, dado ao excesso de trabalho, mais compromissos pessoais, e ainda as festas de final de ano. Algo do tipo “Herzog preguiçoso, sob encomenda, deve interessar somente aos fãs de esqui”. Porém, hoje, vendo a metade final da obra, percebo uma vez mais o quanto o cinema de Werner Herzog é especial em sua capacidade de supreender, inquietar, de buscar sempre o não-óbvio que soe ao mesmo tempo natural e grandioso.
Na reta final da obra, após mais uma premiação (em que, numa cena particularmente reveladora, o amplo sorriso de Steiner para as câmeras enanesce num instante, revelando sua solitude), Steiner menciona um corvo que ele tinha quando criança (provavelmente encontrado órfão e recolhido ainda pequeno por ele). Era seu único amigo, inclusive o esperando voltar da escola, no caminho de volta, numa amizade embaraçada. Porém, provavelmente devido à alimentação (pão e leite), ele começou a ficar fraco, perder as penas e não conseguir mais voar. Isso fez com que os outros corvos começassem a atacá-lo, ferindo-o tanto que o jovem Steiner foi obrigá-do a sacrificá-lo, “porque era uma tortura ver como ele era molestado por seus iguais por não conseguir mais voar”. E então um sorriso amarelo, o último, entre o conformado e o desapontado, encerra a fala.
Steiner era o corvo que tentava voar para que seus iguais não o machucassem. E então eu precisei reescrever o texto porque estava diante de um Herzog legítimo, de boa cepa, e aprendi que jamais devia subestimar aquele alemão maluco, que nunca devia ter ideias preconcebidas sobre sua obra.
E, ao som do Popol Vuh e com as imagens de mais um salto, ampliado até a distorção da cena, como pano de fundo, surge uma citação, supostamente de Steiner, mas que na verdade é inspirada em textos do escritor suíço Robert Walser (1878–1956), e que revela a condição não apenas do protagonista, mas de toda a humanidade:
“Eu deveria estar sozinho no mundo. Eu mesmo, Steiner, e mais nenhuma coisa viva. Sem sol, sem cultura, apenas eu mesmo, nu em uma pedra alta. Sem tempestade, sem neve, sem bancos, sem dinheiro, sem respiração. E então eu não sentiria mais medo”.
Curiosidades:
– O orçamento de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner foi de aproximadamente US$ 50.000.
– Para o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2913), Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner é "o mais emblemático filme da carreira de Herzog". E o próprio Herzog o considera “definitivamente um de seus mais importantes filmes”. ²
O grande êxtase |
– O tal “grande êxtase”, segundo o diretor, é algo que apenas quem já saltou de esqui pode experimentar. “Você pode ver isso nos rostos dos saltadores no filme, enquanto eles varrem a tela em velocidade, bocas abertas, aquela incrível expressão na face”. ³
– Uma das táticas para fazer com que Walter Steiner se soltasse um pouco diante das câmeras (sim, ele era ainda mais retraído do que aparece na tela), foi, numa noite após as filmagens, e com ajuda da equipe de filmagem, agarrá-lo, colocá-lo em seus ombros e sair correndo pelas ruas com ele. Quando Steiner perguntou por que ele estava fazendo aquilo, Herzog respondeu: “Porque eu sei que não há ninguém maior do que você nesse esporte” 4.
– Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner é o primeiro filme no qual Werner Herzog aparece diante das câmeras, como repórter.
– A história do corvo é verídica, e Herzog a descobriu quando, em contato com os familiares de Steiner, encontrou uma foto dele, quando criança, com a ave. Segundo o diretor, levou três dias para que o entalhador-esquiador concordasse em contá-la, tal a carga emocional que aquilo trazia.
¹ ³ 4 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2000.
² EBERT, Roger. Roger Ebert's Four-Star Reviews (1967–2007). Andrews McMeel Publishing, 2008.
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