quinta-feira, 19 de agosto de 2021

(2009) Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans

EUA | 122min | 35 mm | cor
Roteiro: William Finkelstein
Direção: Werner Herzog
Produção: Stephen Belafonte, Randall Emmett, Avi Lerner, Alan Polsky, Gabe Polsky, Edward R. Pressman, John Thompson
Montagem: Joe Bini
Som: Joshua Adeniji, Michael Baird, Robert Dehn, Jason Dotts, Levent Erdogan, Brent Findley, Allie Fitz, Jason Gaya, Judah Getz, Corey J. Grasso, Richard Kitting, Tiffany Lentz, Jay Meagher, Zach Michaelis, Randy Pease, Walter Spencer, Jonathan Wales
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Mark Isham
Elenco: Nicolas Cage, Eva Mendes, Val Kilmer, Alvin Joiner, Fairuza Balk, Shawn Hatosy, Jennifer Coolidge


"What are these fucking iguanas doing on my coffee table?"

A #MaratonaHerzog às vezes exige grandes sacrifícios, como ver um filme ‘franquia de produtor’ convencional – e sabemos como o alemão é preguiçoso com filmes ‘normais’, ainda mais quando não são projetos dele –, e estrelado pelo pior ator de todos os tempos.

Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans (no Brasil, ‘Vício Frenético’) é uma espécie de reimaginação – picaretagem dos produtores – do cult Bad Lieutenant, de 1992, dirigido por Abel Ferrara e estrelado por Harvey Keitel. Em comum, ambos têm apenas o tema ‘policial on drugs muito louco’; assim como fiz com Nosferatu, vou analisar o produto herzogiano independentemente do filme original, sem qualquer comparação.

O filme começa prosaico e apressado: New Orleans, pós-Katrina, o detetive Terence McDonagh vai salvar um detento que está se afogando em um presídio alagado e acaba lesando a coluna; sem mais explicações sobre o salvamento ou a lesão, o médico lhe prescreve Vicodin® pra vida toda, simples assim. Seu ato de bravura, pelo menos, rende a promoção a tenente. Corta pra um ano depois e ele já está viciado em cocaína. Uma família de imigrantes africanos é chacinada, aparentemente por traficantes de drogas, e Terence é nomeado para liderar a caça aos culpados. E é aí que reside o conflito do filme, pois seu envolvimento progressivo em atividades ilegais – drogas, prostituição, apostas – não apenas vai colocar a missão em risco, como também comprometer seriamente sua bússola moral.

Loko

Além do dinheiro, claro, dá pra entender o que atraiu Herzog para esse projeto: o protagonista é imprevisível e caótico, se enrolando cada vez mais devido a sua falta de limites, e Nicolas Cage, a despeito de suas óbvias limitações, se entrega ao papel, como um Klaus Kinski de baixo orçamento que não causa problemas no set de filmagem.

O próprio diretor nos conta: “Nicolas me perguntou: ‘O que o torna tão mau? São as drogas, é o Katrina?’ Não, eu disse. Existe uma coisa chamada bem-aventurança do mal. Aprecie isso. Quanto mais vil e degradado, mais você tem que se divertir”. 1

Não tem muito o que elucubrar sobre o filme, que se desenvolve de forma convencional, até meio frouxa (talvez com meia hora a menos ou melhor equilíbrio entre os atos do filme); a investigação segue quase de forma episódica, sem aquela tensão crescente de que o filme precisaria.

Basicamente o protagonista se envolve com bandidos, pede e deve favor a eles, intimida suspeitos, ameaça testemunhas (mesmo que sejam velhinhas doentes), achaca usuários de drogas (anônimos ou famosos), faz armações com prostitutas e apostadores ilegais. Não fossem os exageros de Nicolas Cage, sempre muitos tons acima (mesmo para um personagem tão degradado), poderia ser qualquer filme policial dos inícios dos 1990s.

Muito loko

E, claro, exceto por três cenas, a de um tiroteio à Scarface, que tem desfecho surreal e surpreendente, a de um crocodilo olhando em primeira pessoa, e pela famosa ‘cena das iguanas’, em que o policial, de tão alucinado, começa a ver répteis cantando (!) em sua mesa de trabalho. São dois momentos em que surge o distorcido humor bávaro do diretor, mostrando que não apenas o ator principal estava se divertindo na empreitada fílmica.

O segundo e mais infame eu até imagino a cara dos produtores – e donos do projeto episódica – quando isso foi gravado. Herzog nos conta: “As iguanas, por exemplo, foram ideia minha. Achei que as drogas estavam destruindo a mente de Terrence. Então, vamos deixá-lo ver iguanas. Vamos fazer a iguana cantar”. 2

Segundo Nicolas Cage, a epifania de Herzog aconteceu em uma festa no meio das filmagens. "Werner bebeu alguns drinques. Ele disse com uma voz perturbada: 'As iguanas são a melhor coisa do filme. E devo ter meus cinco minutos de iguana-time! E se eu não tiver meus cinco minutos inteiros de iguana-time, nunca mais farei outro filme!’” 3

Sem dúvida, os momentos supracitados são de impacto, ainda que surjam deslocadíssimos. Se o filme ainda fosse inteiro nessa toada, mas parece que o diretor apenas fez inserções doidas num roteiro convencional já pronto (aliás, não parece, foi isso mesmo).

A cinematografia é aquele desleixo estiloso herzgiano de sempre para filmes 'normais'; a trilha sonora, no geral, não ajuda nem atrapalha, e as atuações são OK. Mas, é claro, precisamos falar da célebre? atuação de Nicolas Cage, que virou até memes: já disse acima o que acho desse ator lamentável, e tive que me encher de boa vontade para este capítulo da #MaratonaHerzog quando vi que era um filme sob encomenda e com ele pintando & bordando. Mas sim, fui com Jesus no coração assisti-lo. Nos momentos de dor, faz cara de prisão de ventre e anda como se tivesse esquecido o cabide dentro do largo paletó. Quando quer demonstrar alteração por entorpecentes, arregala os olhos, mostra os dentes, parecendo, sei lá, que sujou as calças. Ele, inegavelmente, está se divertindo. Werner Herzog, certamente, também. Eu, já nem tanto.

A crítica, surpreendentemente, elogiou o filme (talvez por condescendência para com o mítico diretor?); o crítico norte-americano de cultura A. O. Scott, por exemplo: “Quem precisa de um Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans – por que ‘Port Of Call’? o que isso significa? – não é uma obra-prima, mas é, sem dúvida, a obra de um mestre. Por quase 40 anos, o Sr. Herzog perseguiu a loucura e a irracionalidade em várias manifestações – ele as encontrou, de forma mais confiável, na pessoa de Klaus Kinski – e às vezes sucumbiu ao fascínio delas. Ultimamente, ele amadureceu um pouco, examinando almas obsessivas e motivadas por meio de lentes documentais ruminativas e analisando suas paixões com um distanciamento irônico e simpático. (...) A atmosfera está impregnada de corrupção e vício, e por mais maluco que o filme às vezes seja, sua brutalidade e confusão nunca são usadas para rir. Tem uma sinceridade distorcida e uma energia que continua e continua”. 4

Também o célebre crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (2013–1942), que provavelmente nunca desgostou de um filme do alemão: “Os detalhes do crime não precisam nos preocupar. Apenas admire a sensação do filme. Herzog, como sempre, procura os detalhes estranhos. Todo mundo está falando sobre as fotos das iguanas e do crocodilo, olhando com olhos frios de réptil. Quem mais, a não ser Herzog, sustentaria seu olhar? Quem mais os colocaria em primeiro plano, colocando a ação em segundo plano? Quem, a não ser Cage, poderia olhar uma iguana de lado com um olhar de suspeita e inquietação? Você precisa ficar de olho em uma iguana. As desgraçadas estão sempre tramando alguma coisa. (…) Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans não é sobre enredo, mas sobre tempero. Como a culinária de Nova Orleans, ela descobre que você pode colocar quase qualquer coisa em uma panela se adicionar os temperos e pimentas certos e cozinhá-los por tempo suficiente.” 5


Loko mesmo


O diretor também apreciou a recepção dos espectadores: “Nunca experimentei uma reação tão intensa a um dos meus filmes. O público pegou todo o humor negro e os detalhes sutis. Houve mais risos no meu filme do que em uma comédia de Eddie Murphy. O filme não é uma comédia, mas tem muito humor ácido”. 6


Se o filme vale a pena? Talvez se você for fã do filme original, e quiser comparar as versões, ou ser gostar muito de Nicholas Cage, ou de Val Kilmer, ou de Eva Mendes, ou mesmo do rapper (e apresentador do Pimp My Ride) Alvin "Xzibit" Joiner; fora isso, tem filme policial melhor e mais bem resolvido na praça (ainda que não seja a porcaria que eu esperava). Mas talvez eu seja apenas uma réptil amargo, afinal, como disse o crítico e diretor britânico de cinema Jonathan Romney, “De alguma forma, Herzog fez um dos thrillers mais divertidos e simples que saíram dos Estados Unidos em algum tempo. Você teria que ser uma iguana, ou Abel Ferrara, para não gostar”. 7



Curiosidades:

– o próprio Abel Ferrara foi a primeira opção para esse filme, mas se recusou a trabalhar com o roteiro de William M. Finkelstein, escritor e produtor de séries como Law & Order e NYPD Blue (no Brasil, “Nova York Contra o Crime”);

– o temperamental Ferrara não gostou nada de o projeto continuar sem ele, e, quando o filme foi lançado, disse coisas como "Desejo que essas pessoas morram no inferno, espero que todos estejam no mesmo bonde e ele exploda"; 8

– Herzog tratou de se defender, dizendo que não era um remake, que não tinha nem visto o Bad Lieutenant original, e que ainda colocou o subtítulo Port Of Call New Orleans justamente para diferenciar as obras, já que era contra a ideia de dois filmes diferentes com o mesmo nome, e enfatizou que “Ferrara tem o direito de ficar com raiva, mas este não é um remake, ele tem vida própria”. 9

– talvez percebendo que se exaltou com um colega de profissão, Ferrara ponderou que seu problema era com os produtores, dizendo “Não tenho problema com Werner; quanto a Nicolas, eu nunca poderia ter um problema com um ator, sabe o quero dizer?, como diretor, me sinto pai de todos os atores ou irmão deles”; 10

–  o alemão encerrou a polêmica com “Gostaria que Abel Ferrara visse meu filme, e se eu souber que ele assistiu ao meu, prometo que assistirei ao dele”; 11

Bad Lieutenant foi rodado em apenas 22 dias, para aproveitar a janela na agenda do protagonista;

– Em menos de um ano, o diretor terminou Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans, o também longa-metragem My Son, My Son, What Have Ye Done (próximo capítulo da #MaratonaHerzog), o curta-metragem sob encomenda para a tevê inglesa La Bohème¬ (que mistura Puccini com a vida dura na África e pode ser visto aqui, traduziu para o inglês seu diário fitzcarraldiano – que se tornou o livro Conquest Of The Useless ["Conquista Do Inútil", em português], fez narração para o curta Plastic Bag, de Ramin Bahrani, e ainda lançou seu próprio curso de cinema (Rogue Film School, em Los Angeles);

– curiosamente, Herzog fez uma ponta não creditada
(como ele mesmo, em imagens de arquivo) em Dangerous Game (Olhos De Serpente), de 1993, de Abel Ferrara;

– apenas uma das iguanas do filme é realmente uma iguana, o outo réptil é uma pogona, também chamada de dragão-barbudo.


1 https://www.interviewmagazine.com/film/werner-herzog-bad-lieutenant
2 6 8 9 https://www.vulture.com/2009/09/director_werner_herzog_on_the.html
3 https://www.latimes.com/archives/la-xpm-2009-nov-15-ca-bad15-story.html
4 https://www.nytimes.com/2009/11/20/movies/20badlieutenant.html
5 https://www.rogerebert.com/reviews/bad-lieutenant-port-of-call-new-orleans-2009
7 https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/reviews/bad-lieutenant-werner-herzog-122-mins-18-1980349.html
10 11 https://www.reuters.com/article/cultura-filme-veneza-herzog-ferrara-idBRSPE5880D420090909