Alemanha (filmado em República Tcheca, na Holanda e no México) | 103min | 35 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog, a partir do livro de Bram Stoker e do filme de FW Murnau
Produção e direção: Werner Herzog
Som: Walter Saxer
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: Florian Fricke (Popol Vuh) e excertos Richard Wagner e Charles Gounod
Elenco: Klaus Kinski (Conde Drácula), Isabelle Adjani (Lucy Harker), Bruno Ganz (Jonathan Harker), Jaques Dufilho (capitão), Roland Topor (Renfield), Walter Ledengast (Van Helsing), Dan van Husen (guarda), Roger Berry Losch (primeiro marinheiro), Jan Groth (capitão), Carster Bodinus (Schrader), Martje Grohmann (Mina), Ryk de Gooyer (oficial), Clemens Scheitz (oficial de justiça), Lo van Hensbergen (inspetor), John Leddy (cocheiro), Margiet van Hartingsveld (empregada), Beverly Walker (madre-superiora)
[Não vou fazer comparações com a obra-prima de Murnau aqui, pois sairia muito do escopo deste blog, além de demandar muito tempo para quem ainda tem dezenas de filmes para percorrer. A versão de Herzog tem força e personalidades suficientes para ser analisada por si só, além de não ser tão fiel nem ao filme-homenageado (a despeito de haver cenas iguais, como homenagem), nem ao livro original.]
Uma vez que todo mundo conhece a história original (pelo menos é isso que Herzog supõe) – o jovem Jonathan Harker vai à Transilvânia fechar o contrato da venda de uma casa para o tal Conde Drácula, e chegando lá em seu castelo percebe que ele é um tipo um tanto excêntrico, e que talvez haja bastante encrenca naquele soturno castelo, inclusive para a noiva de Jonathan, e aí sobram mordidas no pescoço de quase todo mundo –, o diretor não perde tempo com apresentações ou construção de personagens.
Nas palavras do alemão: “Meu filme foi totalmente baseado no Nosferatu original, ainda que eu quisesse injetar um espírito diferente nele. No filme de Murnau a criatura é assustadora porque ele não possui alma e parece com um inseto. Mas no vampiro de Kiski você tem a verdadeira angústia existencial humana. Eu tentei ‘humanizá-lo’. Eu quis dotá-lo de sofrimento humano e solidão, com um verdadeiro anseio por amor, e, mais importante, uma característica essencial do ser humano: a mortalidade.” ¹
Assim o filme, de subtítulo Phantom Der Nacht (Fantasma Da Noite), fica bastante livre pra exercícios estilísticos, o que faz deste um dos visualmente mais belos de toda a filmografia herzogiana, num grande trabalho do diretor de fotografia Jörg Schmidt-Reitwein.
Devo mencionar, aliás, que este é, visualmente, o filme mais belo de Werner Herzog. Além do admirável trabalho de fotografia (muito bem ornado pela trilha do Popol Vuh), Nosferatu é a obra em que o olhar genial do diretor, até então sempre direcionado a manifestações mais intuitivas, livres, até caóticas, dá lugar a um grande apuro técnico, em cenas cuidadosamente construídas.
Cada sequência merece ter o olhar repousado sobre ela, é um filme para ver e rever de tempos em tempos, com diferentes climas e humores, já que é uma obra de arte bastante sensorial, quase mística. As paisagens, como de praxe na mitologia herzogiana, são personagens importantes, sempre dando o clima preciso de morbidez e melancolia à narrativa.Todos os personagens parecem perdidos, especialmente o trio principal: Jonathan e Lucy, um casal visivelmente asséptico, infeliz em seu relacionamento idealizado, frio; e Drácula, solitário, melancólico, frustrado. Até Van Helsing, nesta versão, é um personagem fraco, quase patético.
Deve-se notar que o elemento água é usado frequentemente no filme, para simbolizar o destino, para o bem e para o mal: Jonathan fica feliz de sair de sua cidade, onde as águas retornam sempre ao mesmo lugar, e ir a Transilvânia; Lucy diz que todos estão condenados porque os rios continuam correndo sem eles, e a morte é a única certeza.
O triângulo (des)amoroso do filme, entre sonho e realidade, amor e morte, se origina da falta de paixão, da impossibilidade de mudar esse curso d’água que é o destino. Todos estão nas mãos de Drácula (até ele mesmo, em sua solitude), que é a escuridão, o mal, a decrepitude, e por que não, a monotonia do não-ser.
Vampiro amargurado |
Como em tantos filmes do diretor, trata-se da inútil luta do ser humano consigo mesmo e com a existência. Nosferatu é obviamente um protagonista herzogiano de tão inadequado, deslocado. E o casal, cada um a seu modo, traz essa desgraça para si, para fazer emergir essa infelicidade, esse horror instintivo que ambos trazem consigo.
Ambos abraçam a destruição ao mesmo tempo em que tentam evitá-la, e o destino do vampiro no final das contas é tão-somente a afirmação de que não se pode enganar a morte: Nosferatu perece, mas ainda vive, em outro corpo, em outra forma.
Festim diabólico |
Não há exatamente redenção, são todos incapazes de se realizar ou realizar algo. Do início, com as múmias que servem de memento mori e o voo lento e silencioso do morcego, até o final, em que todos se entregam – Jonathan à loucura e perdição, Lucy ao vampiro e Drácula à destruição.
No final, aliás, Nosferatu não exibe qualquer mensagem de “fim” ou coisa parecida (nem mesmo os créditos), porque dessa forma, para o diretor (como ele diz nos comentários do DVD), "o filme iria continuar dentro de nós, do público".
E continua. Os ratos estão por toda parte, espalhando a pestilência, e todos cantam e se embriagam, em desespero, porque o Sísifo herzogiano só pode fingir que é feliz.
Como tão bem resumiu o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013): “’Nosferatu’ não pode ser confinado à categoria de ‘filme de horror’. É sobre sentir medo, e sobre o quão facilmente os incautos podem mergulhar no Mal”. ²
Curiosidades:
– Nosferatu foi um dos cinco (!) filmes de vampiro lançados em 1979 – os outros foram Dracula (de John Badham, com Frank Langela), Love At First Bite (comédia de Stan Dragoti), Nocturna (de Harry Hurwitz, com John Carradine), Graf Dracula [Beißt Jetzt] In Oberbayern (de Carl Schenkel ), Thirst (de Ron Hardy) e Salem's Lot (de Tobe Hopper, baseado em história de Stephen King);
– o filme recebeu o Urso de Prata de melhor figurino em Berlim e o prêmio de melhor filme estrangeiro da National Board of Review (ambos em 1979), enquanto, no mesmo ano, Klaus Kinski recebeu o prêmio de melhor ator principal do German Film Awards, e, em 1980, o Pelicano de Ouro do Festival de Cinema de Cartagena por sua atuação;
– as incrivelmente lentas (e difíceis) sequências do morcego voando foram retiradas de um documentário científico;
– as múmias do início do filme são reais, compradas pelo diretor de uma exposição no cemitério da cidade mexicana de Guajuanato, onde houve uma epidemia de cólera em 1833, que vitimou essas pessoas;
– Herzog foi acusado de crueldade com animais por ativistas, pois os 11 mil (!) ratos brancos foram importados da Hungria em condições tão deploráveis que começaram a devorar uns aos outros antes de chegar a Holanda, e os sobreviventes foram pintados de cinza para as filmagens;
– como a obra de Bram Stoker já havia caído em domínio público, Herzog resolveu restaurar os nomes originais do romance, que não puderam ser usados por Murnau (Drácula, por exemplo, era Orlok);
– os personagens Mina e Lucy têm seus papeis invertidos em relação ao livro de Bram Stoker;
– Martje Grohmann, aliás, que interpretou Mina, era esposa de Herzog à época (foram casados de 1967 a 1987), e também trabalhou em Aguirre, Der Zorn Gottes, como assistente de produção, e em Lebenszeichen, como assistente de direção, além de ter traduzido para o inglês o roteiro de Invincible (2001);
– o filho de Herzog e Martje, Rudolph, nascido em 1973, foi roteirista e produtor executivo de The White Diamond (2004), roteirista de Happy People: A Year in the Taiga (2010), diretor-assistente em Glocken Aus Der Tiefe (1993), Gesualdo: Death For Five Voices (1995) e Invincible (2001), além de produtor-assistente em Little Dieter Needs To Fly (1997).
– ao contrário das aziagas jornadas com Klaus Kinski em Aguirre, Der Zorn Gottes e Fitzcarraldo (1982), o inquieto ator, segundo Herzog, “amou o trabalho e estava feliz o tempo todo, ainda que ele fizesse uma birra acada dois dias”; ³
– a maquiagem de Klaus Kinski levava quatro horas para ficar pronta, todos os dias;
– Walter Ledengast, que interpreta Van Helsing, atuou como o professor Daumer em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle.
– outras pontas notáveis são do próprio Herzog, como um dos carregadores do caixão com os ratos, e de Clemens Scheitz, do amigo do protagonista de Stroszek (e que também foi o mordomo Adalbert em Herz Aus Glas), como oficial de justiça;
– os ciganos do vilarejo são “de verdade”, do leste da Eslováquia, e falam entre si no dialeto romani;
– o designer de produção Henning von Gierke, também um chef talentoso que gostava de cozinhar para a equipe, preparou ele mesmo a comida para a cena do café da manhã;
– a equipe inteira de filmagem era composta por 16 pessoas, o dobro de Aguirre, Der Zorn Gottes, e filmou por 7 semanas, após 4–5meses de pré-produção;
– os executivos da Fox, que se interessaram por coproduzir Nosferatu, se espantaram quando viram que o orçamento para o roteiro do filme era de apenas US$ 2 – Herzog afirmou que só tinha precisado de lápis e papel para fazê-lo.
¹ ³ HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
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