Alemanha (República Tcheca) | 81min | 35 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog, baseado em peça de Georg Büchner
Produção e direção: Werner Herzog
Som: Harald Maury
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Fiedelquartett Tele, Rudolf Obruca, Benedetto Marcello e Antonio Vivaldi
Elenco: Klaus Kinski (Woyzeck), Eva Mattes (Marie), Wolfgang Reichmann
(Hauptmann), Willy Semmelrogge (médico), Josef Bierbichler
(primeiro-tambor), Paul Burian (Andres), Volker Prechtel (criado),
Dieter Augustin (Market Crier), Irm Hermann (Margret), Wolfgang
Bächler (Jude), Rosy- Rosy Heinikel (Käthe), Herbert Fux (Subaltern),
Thomas Mettke (taverneiro), Maria Mettke (taverneira)
"O texto e as imagens transmitem uma impressão de desamparo perante os acontecimentos: há algo maior que tomou controle desses personagens que esperaram por nada mais que aproveitar seu pequeno pedaço de terra. A palavra immerzu é usada frequentemente no filme, e ainda que seja traduzido como ‘sem cessar’, isso carrega a conotação de algo que não dá descanso, que não dá alívio, o que reflete o constante ataque sobre o vitimizado Woyzeck.” ¹
Angústia personificada |
Apenas cinco dias após o término dos trabalhos em Nosferatu, Herzog pegou o protagonista, e mais toda a equipe de filmagem, e começou a rodar seu antigo projeto de filmar a última e mais célebre peça do dramaturgo alemão Georg Büchner (1813–1837), a fragmentária Woyzeck.
Exceção a algumas contextualizações, o filme é fiel à peça: o soldado raso Woyzeck, sujeito humilde e sem confiança, humilhado pelos de patente mais alta, participa de um experimento ‘científico’ no qual precisa se alimentar somente de ervilhas, por meses. Tudo para arranjar dinheiro para casar com Eva, que rejeita seus avanços por ele não ter nem dinheiro para sustentar direito o filho deles, nem para formalizar o casamento. Ao mesmo tempo ela o trai acintosamente com o primeiro-tambor do Exército, mais forte e mais bonito. A traição e a constante humilhação, junto com a confusão mental que a inusitada dieta traz, acaba fazendo com que Woyzeck mate a esposa, para cometer suicídio em seguida.
Assim como em sua versão para Nosferatu, de Murnau, Herzog filmou a peça de Büchner pretendendo inserir sua obra (e todo o Novo Cinema Alemão) na tradição artística germânica que havia sido interrompida com a ascensão do nazismo. Em suas palavras: “Fazer um filme de Woyzeck significou buscar o mais significativo da história cultural da Alemanha, e por isso há algo no filme que está além de mim. Algo que toca os cumes dourados da cultura alemã, e por isso o filme brilha. Ainda que tudo que eu tenha feito foi buscar e tocar essas alturas”. ²
Mulher infiel |
Não é preciso pensar muito para concluir que Woyzeck é mais um (im)perfeito anti-herói herzogiano: confuso, deslocado e humilhado. Está no mundo, sem, no entanto, fazer parte dele.
Há claros parentescos com Kaspar Hauser, no modo como o cientificismo o subestima, subjuga e traça vereditos para seu comportamento, e com Stroszek (o de Bruno S), dado o jeito como certos aspectos da sociedade lhe são negados por sua condição social inferior.
Para Woyzeck, como para os supracitados, sua existência precária é inescapável: não há saída desse carrossel (que, aliás, aparece com as mesmas cores do vestido de Eva quando é apanhada dançando com o primeiro-tambor) que gira indefinidamente, sem ir a parte alguma, Tal como os caminhões em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen e Stroszek – e neste, também a infame galinha –, ou mesmo os moinhos de Lebenszeichen, a vida é um fado (e um fardo) inescapável. Como Bruno S em Stroszek e Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, só a morte é redentora dessa existência de puro desterro.
E a força do filme reside no fato de que, mais do que em qualquer outro filme, esse peso do mundo inteiro recai sobre os ombros do protagonista: ao contrário de outras obras, em que havia coadujuvantes bizarros e animais grotescos dividindo a missão de mostrar os conceitos de natureza hostil do diretor, em Woyzeck toda essa angústia se derrama sobre o rosto extenuado de Klaus Kinsi, seguramente em seu maior papel. Nas palavras do crítico norte-americano de cinema Vincent Canby (1924–2000): “O Senhor Kinski, com seu rosto profundamente vincado que é simultaneamente jovial e antigo, parece alguém a quem a morte concedeu misericórdia. Assim que colocamos os olhos sobre ele, ele está tomado por demônios”. ³
A estudiosa de cinema Lúcia Nagib acrescenta: “É justamente isso que se espera de um personagem de Büchner: gestos cortantes, feições que se distorcem e puxam ao grotesco, pronúncias marcadas e propositadamente artificiais, contrastes, enfim, já que eles estão presentes em cada linha do texto”. 4
Herzog, que pretendia usar exatamente a exaustão do ator para dar mais veracidade e intensidade à angústia do personagem principal, completa: “Kinski nunca foi um ator que meramente disse suas falas. Ele se exauria completamente, e após Nosferatu ele permaneceu profundamente no mundo que criamos juntos, isso estava muito claro desde o primeiro dia em que caminhamos pelo set de Woyzeck. Ele realmente deu à sua performance uma qualidade diferente desde a cena de abertura, em que ele parece estar tão frágil e vulnerável. Olhe para ele nessa sequência, quando ele está olhando fixamente para a câmera. Há algo que não está bem em seu rosto. Ele está verdadeiramente inchado em um dos lados.” 5
Eu já tinha visto este filme algumas vezes na década passada, pois frequentemente ele era reprisado na TV Cultura (junto com Mein Liebster Feind, de 1999), e confesso que não me chamava muito a atenção, eu o considerava um filme menor na carreira de Herzog – achava o protagonista exagerado, e no máximo ria do inusitado da dieta de ervilhas, que obviamente o enlouquecia.
Porém, revendo nesse final de semana, uns oito anos mais velho, e após ver tantos filmes do diretor, ainda mais nesse contexto de estudá-lo e reconhecer seus padrões, vejo com um dos mais belos e tocantes de sua filmografia.
Ao contrário da grotesquidão de filmes imediatamente anteriores, a angústia e o desamparo que Woyzeck transpira vem com traços de melancolia e romantismo que têm mais a ver com Lebenszeichen e Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner.
Lúcia Nagib teoriza: “O filme de Herzog transmite [com suas paisagens] uma delicadeza na exposição não-verbal dos sentimentos do personagem central que só presenciáramos antes em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle (filme, como dissemos, já concebido sob influência de Büchner)”. 6
A cena em que o protagonista, desesperado, corre pateticamente, falando sozinho, pelos campos floridos, até cair, desajeitado, é talvez a coisa cena mais sublime que o alemão já filmou. Todo mundo que já teve o coração e o espírito alquebrados, partidos, pela existência, pode pegar nas mãos a dor que atormenta Woyzeck nesse momento febril.
Todo o peso do mundo |
E enfim, quando se
consuma o assassinato, e o posterior suicídio, Woyzeck é a maior vítima
(por isso a vítima não é mostrada durante o assassínio), pois mata a si
mesmo duas vezes: primeiro em desespero, depois em amargura. Não se
vinga nem do oficial, nem do cientista, nem dos jocoso colegas, nem do
primeiro-tambor, não prova à esposa infiel seu valor – ao contrário,
acaba todas as chances disso – e só pelo suicídio põe fim ao seu
malogrado fado, a derradeira vitimização.
Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “O gesto sai de cena porque a música, sozinha, basta como único vestígio para o descrever e ampliar. O grito que se ouve é um grito de dor que ressoa para além da violência de da morte, naquilo que poderia ser considerado um melodrama trágico e negro, que não conhece paz por causa da tensão desesperada com a qual o protagonista atravessa a sua própria história.” 7
Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “O gesto sai de cena porque a música, sozinha, basta como único vestígio para o descrever e ampliar. O grito que se ouve é um grito de dor que ressoa para além da violência de da morte, naquilo que poderia ser considerado um melodrama trágico e negro, que não conhece paz por causa da tensão desesperada com a qual o protagonista atravessa a sua própria história.” 7
Morrendo duas vezes |
Quanto ao final, em que os legistas encontram ambos os corpos, o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager destaca: “A epígrafe final ‘Um bom assassinato, um verdadeiro assassinato, um belo assassinato, tão belo quanto um homem pode esperarr ver, não tínhamos igual a esse havia tempos’ poderia ser conectada aos momentos finais de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle”. 8
É o retrato de uma cultura ao mesmo tempo indiferente e fascinada ante às suas próprias crueldades. Não há redenção nem na ciência, nem no primitivismo. Homens, animais, acaso, destino, tudo leva à mesma ruína sem porquê no universo desolado herzogiano.
Curiosidades:
– A abertura do filme é a mesma de Stroszek, um xilofone desafinado tocado por Bruno S.
– Pela performance como Marie, Eva Mattes ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival de Cannes em 1979.
– Eva Mattes, que, aliás, já havia participado de Stroszek, como a prostitua Eva, fora namorada de Herzog, e acabou tendo uma filha (Hanna Mattes) com ele em 1980, quando o diretor já era casado com Martje Grohmann (a Mina de Nosferatu).
– A peça de Büchner é inspirada na história real do peruqueiro (sim, peruqueiro) Johann Christian Woyzeck, de Leipzig, que, em 1821, esfaqueou até a morte sua amante Christiane Woost numa crise de ciúme.
– Woyzeck foi filmado em 17 dias e editado em apenas cinco.
– Herzog pretendia filmar já no dia seguinte após o término das filmagens de Nosferatu, o que só não ocorreu porque foram precisos alguns dias até que o cabelo de Kinski crescesse novamente para o papel principal.
– A equipe usada em Nosferatu foi reutilizada basicamente porque a burocracia na Tchecoslováquia era tão grande que era mais fácil fingir que ainda estavam filmando a saga vampiresca do que pedir autorização às autoridades locais para filmar outra obra no país.
– Sobre essa economia toda de tempo e equipe, Herzog: “Usamos séries de cenas de quatro minutos, então o filme é essencialmente feito de mais ou menos vinte e cinco corte, mais um par de takes menores. Foi muito difícil de manter isso: a ninguém era permitido errar. Esse foi um filme econômico de um jeito que eu provavelmente nunca mais conseguirei fazer”. 9
¹ 7 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
² 5 9 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
³ CANBY, Vincent. In:
http://www.nytimes.com/movie/review?res=950CE3DC1330E631A25757C2A96E9C946890D6CF
4 6 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: O Cinema Como Realidade. Estação Liberdade, 1991.
8 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
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