Alemanha (Guadalupe) | 31min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Rachmaninnof, Mendelsshon, Brahms e Wagner
Elenco: Werner Herzog (narrador)
“De alguma maneira, escondida no filme, há também a grande questão do realismo: ‘Faz sentido ir para tal lugar e fazer um filme em que o perigo é tão iminente, ou seria melhor ficar afastado sem fazer o filme?’ Neste sentido, para mim é um filme muito importante, e na narração falo muito claramente do absurdo da situação, da catástrofe inevitável que nunca aconteceu.” ¹
Um filme, de certa forma fracassado, pode ser bom mesmo assim? Existe lógica em fazer um documentário que provavelmente só estará completo se você morrer enquanto o fizer (e de todo modo, se perdendo também o trabalho feito)?
Após as dificuldades de Aguirre, Der Zorn Gottes, e antes da insanidade completa de Fitzcarraldo (1982), La Soufrière “é o documentário que fez o nome de Werner Herzog como o proeminente ‘risk-taking wildman’ do cinema” ², como disse o jornalista norte-americano Luke Dormehl.
Com o subtítulo Warten Auf Eine Unausweichliche Katastrophe (“Esperando Por Um Desastre Inevitável”), o filme, feito para a televisão alemã, começa com imagens da natureza à Herz Aus Glas – o vulcão expelindo seus vapores mortais de enxofre –, sob a voz reconfortante do narrador-diretor, que explica suscintamente todo o mote do filme: em 1976, o vulcão La Soufrière (‘O Sulfuroso’), na Ilha Basse-Tere, em Guadalupe, estava prestes a entrar em erupção, e a população havia sido evacuada; ao saber que um homem havia se recusado a partir, Werner Herzog decidiu ir até lá documentar essa história, acompanhado por seu diretor de fotografia Jorg Schmidt-Reitwein e pelo cameraman Ed Lachman.
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Rachmaninnof, Mendelsshon, Brahms e Wagner
Elenco: Werner Herzog (narrador)
“De alguma maneira, escondida no filme, há também a grande questão do realismo: ‘Faz sentido ir para tal lugar e fazer um filme em que o perigo é tão iminente, ou seria melhor ficar afastado sem fazer o filme?’ Neste sentido, para mim é um filme muito importante, e na narração falo muito claramente do absurdo da situação, da catástrofe inevitável que nunca aconteceu.” ¹
Um filme, de certa forma fracassado, pode ser bom mesmo assim? Existe lógica em fazer um documentário que provavelmente só estará completo se você morrer enquanto o fizer (e de todo modo, se perdendo também o trabalho feito)?
Após as dificuldades de Aguirre, Der Zorn Gottes, e antes da insanidade completa de Fitzcarraldo (1982), La Soufrière “é o documentário que fez o nome de Werner Herzog como o proeminente ‘risk-taking wildman’ do cinema” ², como disse o jornalista norte-americano Luke Dormehl.
Com o subtítulo Warten Auf Eine Unausweichliche Katastrophe (“Esperando Por Um Desastre Inevitável”), o filme, feito para a televisão alemã, começa com imagens da natureza à Herz Aus Glas – o vulcão expelindo seus vapores mortais de enxofre –, sob a voz reconfortante do narrador-diretor, que explica suscintamente todo o mote do filme: em 1976, o vulcão La Soufrière (‘O Sulfuroso’), na Ilha Basse-Tere, em Guadalupe, estava prestes a entrar em erupção, e a população havia sido evacuada; ao saber que um homem havia se recusado a partir, Werner Herzog decidiu ir até lá documentar essa história, acompanhado por seu diretor de fotografia Jorg Schmidt-Reitwein e pelo cameraman Ed Lachman.
Os vapores sulfurosos de La Soufrière |
Sob o fundo melancólico em tons menores do 'adagio sostenuto' do Concerto Para Piano Nº 2 de Rachmaninoff (aliás, uma de minhas peças clássicas favoritas), que parece, adequadamente, um requiem instrumental, o diretor alemão captura momentos estranhamente poéticos de abandono e vazio nas cenas da cidade vazia. São imagens de uma civilização que deu errado (tema bastante caro a Herzog): semáforos inúteis, cães famintos morrendo por falta de lixo, e tornando-se, eles mesmos, carniça, além de serpentes afogadas na praia enquanto fugiam da desgraça iminente.
Como afirma Luke Dormehl, “É a perfeita metáfora para a visão do diretor da hostilidade caótica da natureza”. ² Surge na tela a recordação de um lugar que já não existe mais, mas que, no entanto, ainda está ali, evocando a Existência tanto antes quanto depois da humanidade, como se a própria noção de vida animal já fosse uma corrupção das paisagens naturais. É mais uma prova herzogiana de que a Criação deu errado e de que tudo seria melhor na quietude do não-ser.
Nas palavras do estudioso de cinema alemão Brad Prager: “Aqui, assim como em Fata Morgana, as imagens lembram as de um filme de ficção científica. É uma visão de distopia, uma civilização que sobreviveu a seus habitantes. Parece que alguma estranha praga removeu as pessoas, mas não as construções. (…) A indiferença dessas ruas à presença de Herzog rivaliza com a indiferença do vulcão para com os humanos em sua base”. ³
Fugindo das nuvens sulfurosas mortíferas que descem da montanha, Herzog e seus dois escudeiros chegam próximos à borda do vulcão, onde filmam enquanto o diretor narra, sob uma atmosfera de intenso pesar, uma terrível erupção em 1902, em uma ilha vizinha, que vitimou centenas de milhares de pessoas, sem falar nos outros animais, e da qual só escapou um preso de alta periculosidade, porque estava isolado em uma solitária.
Enquanto refletimos sobre o poder destruidor da natureza e a inevitabilidade da entropia e do caos, mesmerizados pelas tomadas aéreas das proximidades do vulcão, Herzog chega até o homem que motivou o curta-metragem. Ele e mais dois repousam tranquilamente, à espera do fim.
O que se segue é uma das sequências mais poderosas já filmadas: “Assim que ouvi falar sobre a iminente erupção vulcânica, que a ilha em Guadalupe havia sido evacuado e que um habitante se recusava a partir, eu soube que eu queria ir até lá falar com ele e descobrir que tipo de relação com a morte ele tinha” 4, afirma o diretor.
Muito pobres, até para os padrões da ilha, eles permanecem lá simplesmente porque não têm aonde ir, onde ficar, como se estabelecer. Vagar por outras plagas e ter que voltar depois? Eles preferem permanecer. É só mais uma atitude de quem sempre esteve à margem da sociedade. As pessoas têm onde ficar, eles não. As pessoas têm como se manter em outro lugar, eles não. Elas vão, eles ficam.
Sem qualquer rancor ou ressentimento, eles entregarm o destino nas mãos da Morte – se ela quiser, virá buscá-los; é uma grande maturidade, tranquila, diante do (então) inevitável fim. Deus é que decide, que sabe, e se ele quiser que os três morram ou viva, não há nada que se possa fazer. Assim eles seguem no remanso aparentemente derradeiro. São autênticos outsiders herzogianos, acorrentados inexoravelmente aos seus destinos.
Herzog ressalta a força dessa sequência: “Primeiramente, este filme tem uma metafísica da morte: ele se direciona à indiferença que alguém pode ter quanto à morte ao encarar forças grandes demais para serem compreendidas. (…) Aqui, assim como em muitos trabalhos de Herzog, a morte individual é tão fascinante quando o próprio apocalipse, ainda que neste caso o apocalipse não chegue”. 5
A Morte sempre está à espreita, todo dia é dia de viver e morrer, logo não há poque temer o fado. Eles não possuem quase nada além da própria vida, de modo que preferem vive-la ali mesmo, de qualquer form, até o fim. Estão acostumados aos desmandos da existência.
A assustadora e lúcida tranquilidade de quem está para morrer |
Essa ambiguidade de partir-ficar, viver-morrer, vencer-fracassar, persegue o próprio diretor na conclusão do documentário: “Há certamente um elemento de autoironia no final do filme. Tudo que parece tão perigoso e definitivamente condenado termina na mais completa banalidade. Isso é bom, tive que aceitar que foi assim, e é claro que, em retrospecto, tenho que agradecer a Deus de joelhos que não foi de outra maneira. É um bom resultado que o filme tenha perdido seu clímax violento. Seria realmente ridículo demais ser feito em pedaços, com dois colegas, por um vulcão, enquanto fazia um filme.” 6
É uma experiência cinematográfica e existencial imperdível. Mesmo que você não seja aficionado por Herzog, recomendo que veja este pequeno documentário; é mais uma joia herzogiana que te fará pensar um bocado sobre a própria vida e tudo que o rodeia por aí. Assista a este filme, sem falta.
Curiosidades:
– em 1978, o filme recebeu o prêmio de melhor cultra-metragem no German Film Awards, e Herzog foi eleito melhor diretor, assim como no Cracow Film Festival;
– após aceitar que Herzog fizesse o documentário (“Apenas vá embora logo e faça”, quando indagado por ele sobre o contrato para o trabalho, o executivo de televisão Manfred Konzelmann (com quem o alemão já havia trabalhado em Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner), simplesmente respondeu: Volte vivo e nós fazemos o contrato”;
– o diretor de fotografia Jorg Schmidt-Reitwein, então já um colaborador de longa data, topou a empreitada imediatamente, mas Ed Lachman ainda perguntou o que aconteceria se a ilha explodisse, ao que Herzog respondeu “Ed, vamos para os ares”, com uma calma absurda que convenceu o cameraman e aceitar o trabalho.
¹ PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
² ³ DORMEHL, Luke. A Journey Through Documentary Film. Oldcastle Books, 2012.
4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
5 6 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
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