Alemanha | 85min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Bach e Vivaldi
Elenco: Rolf Illig (narração), Fini Straubinger, Eise Führer, Ursula Riedmeier, Vladimir Kokol, Heinrich Fleischmann, Resi Mittermaier
Enquanto fazia Behinderte Zukunft, Werner Herzog conheceu Fini Straubinger, uma senhora de 56 anos que perdeu a visão aos 16 e ficou surda dois anos mais tarde. Sem tratamento específico (sob o regime nazista, deficientes deviam se dar por satisfeitos em não serem mortos), permaneceu 30 anos na cama, praticamente vegetando, dependente de morfina, até resolver se virar sozinha: aprendeu o alfabeto tátil, uma complexa linguagem de sinais por meio de toques nas mãos, e passou a visitar surdos-cegos como ela, para que também se integrassem entre si e no mundo.
Com vocês, a incrível Fini Straubinger |
O complexo alfabeto tátil |
Inspirada em sua incrível história, o diretor resolveu fazer um documentário (o primeiro feito por conta própria, e não por encomenda) sobre o mundo dos surdos-cegos. Em suas palavras: “[Fini Straubinger] me fez pensar sobre solidão com uma magnitude que eu nunca tinha conseguido até então. Em seu caso, a solidão é levada a limites inimagináveis”. ¹
Assim, Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit (Terra Do Silêncio E Da Escuridão) estrutura-se em duas partes: na primeira, triste, porém mais sensível, mostra a vida de Fini e seu trabalho com os que compartilham de sua condição (pessoas que perderam a visão e a audição durante a vida). Já a segunda parte, verdadeiro soco no estômago, foca nos surdos-cegos de nascença, ou seja, aqueles cuja terra-natal é a Terra do Silêncio e da Escuridão.
Que saber como é ser um surdo-cego? Fini Straubinger nos conta: “A cegueira é como um rio negro, correndo feito uma lenta melodia, em direção a uma grande cachoeira. Em suas margens, árvores e flores, e pássaros cantando docemente. O outro rio, vindo do outro lado, é claro como o mais puro cristal, e também corre lentamente, porém sem nenhum som. Lá no fundo tem um lago muito escuro e profundo, onde se encontram os dois rios. Lá tem rochas, que fazem as águas borbulharem, para então deixá-las correrem silenciosa e lentamente. E naquele reservatório sombrio jaz uma calma de morte, somente perturbada por uma onda ocasional – representando a luta do surdo-cego”.
Nota-se que, mesmo com momentos bastante emotivos como os surdos-cegos voando de avião (e se emocionando como se pudessem ver a paisagem) e brincando com os bichos do zoológico, o clima do filme não é exatamente auspicioso. Fini Straubinger se agiganta diante da tela, com sua enorme superação e seu trabalho humanitário, mas sua fala solene e pausada sempre reflete profundíssima melancolia: ela não é daquelas pessoas que encara sua condição com otimismo; apenas procura viver, mais que sobreviver. Sua voz é pura mágoa, completo ressentimento com o isolamento que vive e o que lhe fora imposto nos anos acamada. Ela só quer trazer um pouco de alívio aos que sofrem como ela, um pouco de luz no Abismo.
Seu contato com o mundo é o tato. Para ela, não faz diferença estar rodeada por dezenas de pessoas se ninguém a tocá-la. Como ela diz para Herzog: “Quando você solta a minha mão, é como se estivéssemos a quilômetros de distância”. Não temos como saber sua percepção de espaço-tempo (inclusive ela usa um relógio no pulso, jamais saberemos por quê).
Mas é na segunda parte, sobre os surdos-cegos de nascença, que o clima pesa de vez. Destaque para a sequência bastante tensa com um rapaz de 22 anos chamado Vladimir Kokol, que além de ser surdo-cego, tem síndrome de Down, e jamais recebeu tratamento especial, de modo que ele não aprendeu nem mesmo a andar, quanto mais algum tipo de linguagem. Ele fica apenas fazendo barulhos irritantes com a boca e batendo com uma pequena bola de futebol na própria cabeça. A cena é triste, pesada, muito crua, mas nunca gratuita. Então Fini Straubinger surge e tenta estabelecer contato com ele, e vemos a gradação dos isolamentos: até para Fini o mundo de Kokol é impenetrável.
Com os surdos-cegos de nascença, a princípio incapazes de ideias abstratas, e limitadíssimos em seu contato com o exterior a resposta aos seus estímulos, Herzog nos provoca sobre o quanto a humanidade é definida pela nossa interação social com o mundo ao redor (tal questão já aparecera em Assim como em Letzte Worte). Como será a percepção que eles têm deles mesmos? Eles são menos humanos por inexistirem em linguagem? O diretor complementa: “E a questão de como aprendemos conceitos, aprendemos linguagens, aprendemos comunicações, também está lá. É um tema que também surge muito fortemente em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle [1974], e eu sempre senti que os dois filmes se encaixam bem”. ²
Obviamente não conseguimos saber como é a Terra do Silêncio e da Escuridão – nem teríamos como, uma vez que o cinema é essencialmente sensorial, primordialmente feito de visão e audição. Porém, Herzog mostra tudo com tanta crueza, e ao mesmo tempo com tanta empatia – o filme é cru, pesado, lento, opressivo, sem concessões, mas nunca cai no sensacionalismo ou na exploração dos doentes – que apenas os ecos e as sombras desse mundo de infindável solidão já no assombram para o resto da vida.
Eu mesmo, que já tinha visto o filme havia tempo, levei mais de uma semana para revê-lo: cada sequência pesa uma tonelada sobre o peito. Não tem apelação (pelo contrário, vemos empatia e humildade), mas apenas a visão pessimista e nada bondosa que Werner Herzog tem da existência.
E essa percepção da distância – vislumbramos a superfície do mundo deles, eles vagam sem rumo pelo nosso mundo – que não temos como diminuir, nem ao menos retribuir, nos mostrando de volta, é o que torna o documentário silenciosamente sufocante, duro de mastigar e engolir, mas ainda assim absolutamente tocante.
Para o especialista americano em filosofia da arte Noël Carroll, “a inescrutabilidade das forças que os movem ergue certa distância afetiva, uma espécie de persistente lucidez entre nós e eles. Tais figuras são virtualmente canonizadas por Herzog pela singularidade e inacessibilidade de suas paixões e de suas vidas internas”.³
No final, temos a cena para a qual todo o documentário é uma preparação, como admite o diretor. Temos Heirich Fleischmann, de uma família de vinicultores, que, uma vez surdo-cego, fora abandonado por todos e acabou indo dormir com os animais do estábulo, em busca de calor e companhia. Não vou entrar em detalhes sobre a sequência, pois ela precisa ser vista, mas, para o crítico americano de cinema J. Hoberman (1948–), “seria difícil imaginar uma ilustração mais enxuta e econômica do que [o filósofo alemão Martin] Heidegger [1889–1976] chama Dasein [ser-aí, ser-no-mundo], a existência em um mundo sem sentido”. 4
E nas palavras do professor americano de cinema alemão Randall Halle, “Essas cenas não são belas, nem sublimes, ao menos na concepção kantiana; nossa razão não está apta a contê-las e restaurá-las à racionalidade”. 5
Mais do que um filme sobre a negligência com os deficientes, sobre a superação de Fini Straubinger, sobre os limites da linguagem e do Ser, sobre os sentidos (especialmente o tato), Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit é sobre solidão e isolamento. A solidão de todos nós. O inexorável isolamento da humanidade, que tateia na escuridão em busca de alguém semelhante, que lhe compreenda.
Herzog sintetiza: “As pessoas geralmente respondem tão positivamente ao filme porque ele é sobre solidão, sobre as terríveis dificuldades de ser compreendido pelos outros, algo com que temos que lidar em todos os dias de nossas vidas. E no filme encontram-se a mais radical e absoluta dignidade humana, o sofrimento humano completamente desnudado.” 6
Curiosidades:
– O filme, feito para a televisão (mais um dos raros 16 mm do diretor) custou apenas US$ 30 mil.
– Nos comentários do DVD do filme, Herzog admite que alguns pensamentos ditos por Fini (especialmente os das cenas inicial e final) são, na verdade, dele.
– Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit foi recusado pelas redes de tevê alemãs por dois anos e meio, devido às críticas que acusavam o diretor de explorar a desgraça dos surdos-cegos. Até que o neurologista e escritor britânico Oliver Sacks (1933–2015) defendeu o filme publicamente, o que tornou as críticas mais favoráveis permitiu que o filme tivesse maior visibilidade.
¹ ² 6 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber. 2001.
³ CARROLL, Nöel. Interpreting The Moving Image. Cambridge University Press, 1998.
4 HOBERMAN, James Lewis. Alien Landscapes, Vol. 26. Village Voice, 1981.
5 HALLE, Randall. Perceiving The Other In The Land Of Silence And Darkness. Em A Companion to Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
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