Alemanha (Peru e Brasil) | 137min | 35 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer, Lucki Stipetić e Werner Herzog
Som: Petra Mantoudis
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Música: Florian Fricke (Popol Vuh) e excertos de Richard Strauss, Guiseppe Verdi, Leoncavallo, Meyerbeer, Michael Vuylsteke, Jules Massenet, Giacomo Puccini, Vincenco Bellini e gravações originais de Enrico Caruso
Elenco: Klaus Kinski (Brian Sweeny ‘Fitzcarraldo’ Fitzgerald), Claudia Cardinale (Molly), José Lewgoy (Don Aquilino), Paul Hittscher (capitão), Miguel Angel Fuentes (Cholo), Rui Polanah (Don Araújo), Huerequeque, Milton Nascimento, Grande Otelo
“Minha existência foi reduzida a uma só dimensão: uma trilha e um navio diante dela.” ¹
Além do fato de ficção e documentários serem gêneros não muito distinguíveis na obra de Werner Herzog, outro ponto importante é que as histórias absurdas que envolvem cada produção, dado o modo ‘guerrilha’ como tudo é feito (com pouco dinheiro, muito improviso e pouco apreço por normas de segurança por parte do diretor), também fazem parte do produto cinematográfico final. E me nenhuma obra de sua extensa filmografia isso é tão evidente, importante e indissociável como em Fitzcarraldo, considerado, mais do que a obra-prima do diretor, a síntese de todo o seu trabalho.
A história em si é até convencional, para os padrões herzogianos, e até um tanto intrincada demais: o empresário irlandês Brian Sweeney Fitzgerald, chamado de Fitzcarraldo pelos nativos amazônicos, que lhe conheciam desde a frustrada tentativa de de construir uma ferrovia transandina, ligando a Amazônia ao Pacífico – empreitada de boa parte de sua vida, que o levou à falência e lhe rendeu o epíteto de Conquistador do Inútil, reforçado pelo malograda fábrica de gelo que ele tentava manter na região desde então.
Sem esmorecer, o irlandês sonhador resolve se dedicar a outro grande sonho: construir uma casa de ópera no meio da salva, na cidade de Iquitos, na Amazônia Peruana, a fim de mostrar aos locais a beleza da música erudita. Fã do italiano Enrico Caruso, o provável maior tenor de todos os tempos, Fitzcarraldo pretende trazê-lo para inaugurar o teatro.
Seguindo os conselhos de um empresário local, Fitzcarraldo resolve investir no então lucrativo mercado regional da borracha, conseguindo a concessão governamental para explorar uma área ainda virgem.
Com dinheiro emprestado de sua amante, Molly, dona de um bordel, Fitzcarraldo compra um barco a vapor, arregimenta uma tripulação de locais e se aventura em territórios selvagens a fim de alcançar o terreno que adquiriu. Porém, a fim de evitar corredeiras e quedas d’água, o irlandês pretende inaugurar uma nova rota de comércio de borracha, adentrando território indígena, chegando ao extremo de carregar o barco morro acima, até outro curso d’água, menos rebelde.
Rumo a mais um sonho |
O argumento foi levemente inspirado na história do exporador e comerciante Carlos Fermín Fitzcarrald (há inclusive uma privíncia peruana com seu nome), um barão da borracha, filho de pai americano e mãe peruana, que descobriu um istmo (que também foi batizado com seu nome) entre dois rios, pelo qual atravessou com seu barco sobre o trecho entre dois afluentes do Amazonas.
Na vida real, o navio pesava apenas 30 toneladas (contra as 300 do filme), e foi transportado em pedaços, não inteiro. Além disso, o Fitzcarraldo de carne e osso era um grande explorador de índios, que foram forçados, sob ameaça de morte, a fazer o trabalho.
Herzog explica: “O verdadeiro Fitzcarraldo não era muito interessante em si, apenas outro deplorável homem de negócios da virada do século [20], enquanto que a história do ciclo da borracha no Peru não me interessava nem um pouco. O amor de Fitzcarraldo pela música era minha ideia, pensando que, de fato, os barões da borracha do século passado [19] realmente construíram uma casa de ópera – o Teatro Amazonas – em Manaus. Então os elementos históricos reais da história eram para mim meramente um ponto de partida”.² A ideia do alemão era fazer “não uma história sobre borracha, mas sobre uma grande ópera na selva com esses elementos de Sísifo”. ³
E sobre a escolha de transpor a colina com o barco inteiro, e não aos pedaços: “Eu falei [a Laplace Martin, engenheiro brasileiro da equipe, especialista em transportes pesados] que não deixaria que [Laplace e o diretor de produção Walter Saxer] fizessem tal coisa [aplainar a subida para o terreno ficar parecido com a abertura de um istmo, facilitando o transporte do barco], pois assim perderíamos a metáfora central do filme. Metáfora de quê, ele me perguntou. Eu disse que não sabia, sabia apenas que era uma grande metáfora. Talvez fosse também só uma imagem adormecida em todos nós, e eu seria aquele que a apresentaria a um irmão que jamais a tivesse visto”. 4
Bem, podia ser pior: “Por um longo tempo a Twentieth Century Fox esteve interessada em produzir o filme [eles já haviam produzido Nosferatu], mas ele propuseram que usássemos maquetes de barco e colina, e aquilo estava fora de questão para mim”. 5
Para a empreitada, Herzog encomendou 700 nativos, que operaram um sistema de polias. E Laplace se afastou do projeto quando Herzog optou por continuar, mesmo depois que o engenheiro afirmar que havia 70% de chance de os cabos quebrarem e ferir os trabalhadores.
Sísifo |
As coisas já não estavam fáceis, como já se pode notar; só pré-produção já havia durado uns três anos [há um relato detalhado disso no diário Conquista Do Inútil, escrito à época pelo próprio Herzog. Porém, quando 40% do filme já havia sido rodado, duas hecatombes: com tanto atraso, tinha chegado a hora de Mick Jagger se juntar aos Stones para mais uma turnê (do disco Tattoo You, de 1981), e o pior, o protagonista, Jason Robards, com uma terrível desinteria, deixou as filmagens e foi proibido pelos médicos de voltar.
“A pergunta para a qual todos queriam resposta era: teria eu os nervos e a força para começar tudo de novo? Eu disse que sim, caso contrário eu seria uma pessoa desprovida de sonhos, e sem eles eu não queria mais viver.” 6
O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) destaca um desses momentos: “Na hora mais escura em Fitzcarraldo, quando Robards adoeceu e ele teve que abandonar quatro meses de filmagem, Herzog voltou a pedir dinheiro aos investidores. Eles tinham ouvido dizer que ele estava achando impossível passar o barco através da montanha, e perguntaram se não seria mais prudente encarar as perdas e desistir. Sua resposta: ‘Como vocês podem fazer essa pergunta? Se eu abandonar esse projeto, eu vou ser um homem sem sonhos, e eu não quero viver assim. Eu vivo minha vida ou eu termino minha vida com esse projeto’”. 7
[Enquanto isso, a imprensa alemã publicava todo tipo de factoide sobre a produção, de exploração dos índios a mortes em acidentes trágicos nos set, fosse o diretor um novo barão imperialista.]
Pois ele decidiu recomeçar. Afinal, como ele mesmo disse, “Não foi dinheiro que puxou aquele barco sobre a montanha, foi fé” 8. Eliminou o personagem de Mick Jagger e chamou o infame Klaus Kinski para o papel principal. Kinski era perfeito para o papel, mas, claro, isso trouxe outro problema às filmagens: chamado como “salvador da pátria”, veio ainda mais insuportável do que fora em Aguirre, Der Zorn Gottes, a ponto de os índios do elenco se oferecerem a Herzog para matar o problemático ator. Nos extras do DVD do filme, o próprio diretor diz: “Kinski era um verdadeiro problema; às vezes eu queria que eles o tivessem matado”.
[Em Mein Liebster Fiend (1999), Herzog relata, além da oferta mórbida dos índios, que ele mesmo ameaçou Kinski de morte, com uma espingarda (quando este estava ameaçando abandonar as filmagens), dizendo que o mataria e depois cometeria suicídio – versão desmentida por ele mesmo em entrevistas posteriores.]
De todo modo, apesar de coisas como incidentes com milícias peruanas e tropas antiterror do governo, Ataques com flechas, membro da equipe (Thomas Mauch) quase perdendo a mão num acidente enquanto filmava o clímax da história, habitante local sendo picado por uma cobra venenosa e cortando o próprio pé com uma motosserra para sobreviver, acidentes de avião, o filme seguiu seu curso tortuoso, feito o barco a vapor pelas corredeiras.
São tantos problemas, da pré-produção até o filme ficar pronto, que não há como relatar tudo aqui. É recomendável que se leia Conquista Do Inútil, diário que Herzog escreveu no dia a dia, à época, e só publicado recentemente; e praticamente obrigatório que se veja o documentário Burden Of Dreams (1982), do documentarista americano Les Blank (1935–2013), amigo do alemão, que acompanhou parte da produção e fez belos registros de todo o épico que foi a feitura do filme, além de conter as únicas cenas que ainda existem das filmagens com Robards e Jagger. Com isso toda essa odisseia tem sua dimensão melhor compreendida.
E o impossível vai tomando forma |
Mas aí vem a pergunta inevitável, depois de tanto preâmbulo e tanta história: o filme é bom?, o filme funciona?, o filme é digno de tanta mística em torno dele?
Vamos lá: quando vi Fitzcarraldo pela primeira vez – era um dos meus primeiros herzogs da vida adulta, explico um pouco disso e da própria #Maratona aqui – fiquei maravilhado, ainda que já o tivesse achado um tanto longo.
Tanto que, durante as pesquisas para este post, já tinha decidido que discordaria veementemente das reclamações feitas pela crítica brasileira Lúcia Nagib (provável maior especialista no Brasil sobre o diretor) em seu livro Werner Herzog: O Cinema Como Realidade, de 1991. Bom, em uma coisa ela continua errada, e nem sou eu quem a corrige: parte da crítica dela se baseia em comparações com Aguirre, Der Zorn Gottes, e, segundo o diretor, apesar de ambos terem “Peru, selva e Kinski”, 9 ele explica que Fitzcarraldo tem muito mais a ver com Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner, porque ambos os homens “são sonhadores que querem desafiar as leis da gravidade”. 10
No geral, Lúcia vê nesse período Nosferatu–Fiztcarraldo um ponto de inflexão, em que o diretor perde suas muito de suas características mais rústicas (até pelo relativo sucesso das obras anteriores, o que leva a mais dinheiro para a produção, e, consequentemente, maiores pretensões) e ganha feições mais pomposas/pasteurizadas, “banalizando e submetendo às regras de mercado qualidades que eram a alma de seus filmes anteriores”. 11
[A década de 1980 é reconhecidamente a mais convencional e menos interessante do diretor, mas é algo que veremos “pessoalmente” nos próximos passos da #Maratona.]
O filme tem muitos problemas: o roteiro é muito intrincado (para os padrões herzogianos), porém, mesmo com a longa duração do filme, as coisas se resolvem de forma frouxa, quase deus ex-machina; Kinski faz um grande trabalho, como sempre, mas a obsessão de Fitzcarraldo com a ópera na selva nunca é justificada consistentemente (para Nagib, “O bom humor com que Fitzcarraldo encara o resultado de seus atos no fim do filme nos faz concluir por quase uma leviandade de seu caráter” 12; os demais personagens não são bem construídos (os índios são quase parte do cenário, de tão indistintos); diante da ascensão e queda (literal e figurativamente) do barco a vapor, a própria história da ópera fica em segundo plano.
O próprio diretor, compreensivelmente, parece exausto ao término de tudo aquilo, ainda que esta constatação derradeira sirva, mais do que nunca, para uni-lo com tudo que houve dentro e fora do filme: “Não houve nenhuma dor, nenhuma alegria, nenhuma felicidade, nenhum som e tampouco um suspiro profundo. Era apenas a compreensão de uma grande inutilidade, ou, mais exatamente, eu tinha apenas penetrado de maneira mais profunda em seu misterioso reino” 13.
Muitos críticos também viam no modo simpático como Herzog retratou o colonizador (ao contrário do que fez em Aguirre, Der Zorn Gottes), seria uma exaltação do imperialismo; o escritor e jornalista holandês Hans Koning (1921–2007) chegou ao cúmulo de dizer que Fitzcarraldo seria "o tipo de filme que veríamos muito se a Alemanha tivesse vencido a guerra" 14.
Mas é Lúcia Nagib, em uma análise bem mais recente, que fornece a explicação mais plausível para a falta de unidade do filme, ressaltando que não foram os problemas todos da produção que afetaram o resultado final, "mas uma tentativa mal-sucedida de juntar um grande número de tópicos desconexos: a história de um irlandês que carregou partes de um barco sobre a terra entre dois afluentes amazônicos; a fascinação de Herzog com dólmens e menires de Karnak [a técnica de construção monumental egípcia foi usada na subida do barco morro acima], seu interesse em ópera; sua pressa em adentrar o mundo das celebridades ao escalar gente como Jason Robards, Mick Jagger e Claudia Cardinale; e mais um pot-pourri de citações descontextualizadas ao Cinema Novo, como Milton Nascimento, José Lewgoy e Grande Otelo". 15
Mas e aí, fora toda a tragicomédia da produção, e da loucura do transporte do navio em cena, nada se salva do filme?, você deve estar se perguntando.
A Queda |
Sim, claro que vale. Continua sendo obrigatório (mais ainda em uma sessão dupla com Burden Of Dreams), pois todos os elementos herzogianos estão lá, imponentes, intocados, ainda que alguns estejam diluídos, como a inevitabilidade do fracasso e as cenas com animais, que surgem belas (e não grotescas, como na maioria das vezes), mesmo sem terem a ver com a história.
Temos o protagonista outsider, deslocado tanto no tempo quanto no espaço, com suas ideias fixas; temos a natureza sempre inóspita e hostil, e da solidão (ainda que ambos surjam bem atenuados aqui); o interesse em cenas, especialmente com animais, que surgem belas, mesmo sem terem a ver com a história – não à toa, no início do filme, é citada uma suposta lenda local de que a região seria “a terra onde Deus não terminou a Criação”, e que “somente quando o homem for extinto Deus voltará para terminar seu trabalho” –; é sempre a Criação incriada e de mal com os seres vivos. Em Burden of Dreams, Herzog diz que aquela selva é "uma terra que Deus, se ele existe, criou com raiva".
E, acima de tudo, mesmo com certa convencionalidade na forma, e com os tons épicos que envolvem as sequências de desafio & fracasso do barco contra a natureza, é um filme essencialmente contemplativo, com muitos de planos cheios de quietude mesmo com todo aquele ‘ruído’ que a história, e tudo que a envolve, produz. Nas palavras do especialista norte-americano em cinema alemão Brad Prager, é "a recorrente fascinação com o poder do silêncio além e acima da linguagem; estranhamente, o silêncio prevalece neste filme sobre ópera”. 16
Roger Ebert vai além: “O fime é imperfeito, mas transcendente: esta história não poderia ser filmada nessa locação, desse jeito, e ser perfeita, sem perder um tanto como filme. (...) O que é crucial é que Herzog não tem pressa com sua história; ele busca não o progresso do roteiro, mas a ressonância das imagens. Considere a sequência onde o barco realmente se joga e se bate no caminho através do perigoso Pongo das Mortes; outro diretor poderia ter feito disso uma cena rotineira de ação, com cortes rápidos e muito barulho; Herzog faz isso em uma lenta e terrível procissão descendo por correntezas de verdade em um barco de verdade, com um fonógrafo tocando Caruso até que a agulha seja jogada pra fora do disco. Isso parece muito mais horrível que a grande embarcação lentamente flutuando até seu destino”. 17
Apesar de tudo, é outro dia |
Por isso, por mais que a conclusão do diretor à época tenha sido tão (compreensivelmente) pessimista e desolada, é exatamente essa tensão entre o que desejamos fazer e o que conseguimos obter, entre o que podemos controlar e o que simplesmente deve ser deixado ao acaso, que define nossa existência, queiramos ou não. E aceitar isso, como o Sísifo greco-camusiano, pode nos dar forças para recomeçar sempre que as coisas se desmancham diante de nós.
Com a palavra, nosso ‘homem absurdo’ cinematográfico, já mais consciente do que foi sua jornada: “Uma imagem como uma embarcação se movendo por uma montanha parece nos dar toda a coragem para nossos próprios sonhos. Este é um filme que desafia as mais básicas leis da natureza. Barcos não foram feito para voar sobre montanhas. A história de Fitzcarraldo é a vitória da leveza dos sonhos sobre o peso da realidade. Ela desafia diretamente a gravidade, e ao final do filme espero que o público se sinta completamente contente e mais leve do que quando entrou”. 18
Somos todos, cada um ao seu modo, todos os dias de nossas vidas, grandes conquistadores do inútil.
Curiosidades:
– a despeito das críticas negativas em sua terra-natal, Werner Herzog venceu, em 1982, por Fitzcarraldo, os prêmios de Melhor Diretor nos festivais de Cannes (França) e San Sebastián (Espanha).
– O roteiro do filme foi escrito na casa de Francis Ford Coppola, grande admirador de Herzog (Aguirre, Der Zorn Gottes é influência confessa para Apocalypse Now, ainda que o caos deste acabe tendo também muito de Fitzcarraldo), em São Francisco, em oito dias.
– Herzog foi ao set de filmagens de The Shining (‘O Iluminado’, no Brasil) encontrar Jack Nicholson, pois este queria participar de Fitzcarraldo – mas a ideia não vingou, já que o ator não queria ir à selva, sugerindo inclusive que tudo fosse feito em estúdio (sua pedida de salário, US$ 5 milhões, também não ajudou – segundo Herzog, o filme inteiro custou US$ 6 milhões); quando soube que o alemão estava no local, Stanley Kubrick, também admirador da obra herzogiana, convidou o diretor para um almoço.
– Após a saída de Jason Robards, Herzog chegou a cogitar a si mesmo como protagonista (mas desistiu ao perceber que “projeto e personagem haviam se tornado idênticos”)19, antes de decidir pelo notoriamente problemático Kinski, “a última pessoa capaz de suportar um trabalho assim”. 20
– A geografia da região onde se passa o filme não é exatamente como mostrado no mapa exibido na primeira parte do filme, é quase ficcional de tão pouco acurado, tendo sido alterado para servir à história.
– Uma vez transportado até o alto da colina, o barco teve que que ficar encalhado lá por seis meses, pois a produção viu que o rio do outro lado estava com profundidade insuficiente para ser navegado; Herzog, então, pagou a uma família local (casal, cinco filhos e um casal de porcos) para que vivessem na embarcação (e cuidando dela) até que pudesse ser descida às margens, com água suficiente, o que levou seis meses para acontecer – outras partes da história foram filmadas enquanto isso.
– No apagar das luzes de Conquista Do Inútil, Herzog conta que certo integrante da equipe, não revelado, teve insanidade temporária durante a produção (“felizmente um episódio passageiro”), o que incluiu confusão mental, agressividade, se vestir como se fosse um índio pronto para a guerra, incêndio à cabana do diretor e até tomar como reféns duas jovens da cidade.
– Chegou um ponto em que Herzog, cansado dos rumores sensacionalistas que a imprensa (não só a alemã, mas de toda a Europa) publicava, começou a combatê-los com boatos ainda piores. Por exemplo: quando a mídia italiana apareceu com a história de que Claudia Cardinale teria sido atropelada por um caminhão e estaria em estado grave, Herzog respondeu que “não só aquilo era verdade, como também o motorista do caminhão estava bêbado e tinha estuprado a vítima inconsciente”. E, assim, os boatos foram rareando.
– Além da importante atuação de José Lewgoy (1920–2003) – que reapareceria em Cobra Verde, de 1987 –, e da ponta de Milton Nascimento, vale mencionar a pequenina participação de Grande Otelo (1915–1993), uma vez que ele foi o protagonista de Macunaíma, de onde saiu a frase que dá nome a Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle.
– Além de Conquista Do Inútil e de poemas esparsos, Herzog também escreveu o belíssimo Caminhando No Gelo (de 1978, traduzido por Lúcia Nagib em 1982) – do qual ele dizia gostar mais do que de todos os seus filmes –, narrando quando, em dezesseis dias no final de 1974, andou de Munique a Paris (uns 800 km), numa jornada de tons ao mesmo tempo épicos e introspectivos, a fim de visitar a amiga doente, narradora de Fata Morgana, Lotte Eisner (historiadora e crítica alemã de cinema) – Herzog decidiu que sua peregrinação, em sacrifício, salvaria a vida da amiga (por causa disso ou não, Lotte, nascida em 1896, só morreria em 1983).
– Les Blank, de Burden Of Dreams, também dirigiu o divertido curta Werner Herzog Eats His Shoe (1980), que mostra Herzog cumprindo a aposta que fizera com o amigo norte-americano Errol Morris, como forma de mexer com seus brios: se ele conseguisse terminar seu primeiro documentário, Gates Of Heaven (sobre o negócio de cemitérios para animais), o alemão comeria os próprios sapatos (supostamente, no filme, ele come os mesmos que usava quando a aposta foi feita); enquanto o “prato” é temperado, há discussões sobre os efeitos destrutivos do capitalismo e da televisão sobre o imaginário da humanidade, além de menções à a promessa feita e cumprida na filmagens de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen.
– Herzog diz gostar de Burden Of Dreams, mas com ressalvas, tanto pelo fato de não ser muito abrangente (Les Blank acompanhou apenas cinco semanas, dos mais de três anos que o filme levou para ser terminado) quanto por algumas edições e alguns cortes que teriam aumentado o clima de perigo que haveria para a toda a equipe.
– No episódio On a Clear Day I Can't See My Sister (2005), d’Os Simpsons, há uma cena em que os estudantes são forçados a puxar o ônibus escolar montanha acima; o alemão Üter reclama “Estou me sentindo como Fitzcarraldo!” e Nelson soca seu estômago, enquanto diz “Esse filme foi um fracasso!”.
– Das tantas citações musicais ao filme, vale destacar o álbum Fitzcarraldo (1996), da banda irlandesa de pop rock The Frames, em cuja faixa-título o eu-lírico se compara a “alguém puxando um barco montanha acima”.
¹ 6 13 19 20 HERZOG, Werner. In: Conquista Do Inútil. Martins Fontes, 2013.
² ³ 4 5 8 9 10 18 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
7 17 EBERT, Roger. In: http://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-fitzcarraldo-1982
11 12 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: O Cinema Como Realidade. Estação Liberdade, 1991.
14 KONIG, Hans. Crítica de Fitzcarraldo em 1983 no Film Qarterly, apud Brad Prager em The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
15 NAGIB, Lúcia. Physicality, Difference, And The Challenge Of Representation. In.: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
16 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
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