sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

(2003) Wheel Of Time

Alemanha (rodado na Índia, na Áustria e no Tibete | 80min | Super 16 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Prem Rana Autari, Sur-Sudha Autari, Lhamo Dolma e Florian Fricke (Popol Vuh)
Elenco: Dalai Lama


Documentário sobre o maior ritual budista para promover a paz e a tolerância, realizado por Sua Santidade o Dalai Lama, em Bodh Gaya, Índia, e Graz, Áustria, em 2002, incluindo entrevistas exclusivas com o Dalai Lama e acesso a rituais secretos pela primeira vez em filme, bem como imagens de uma peregrinação ao Monte Kailash, no Tibete.

Assim o site oficial do diretor descreve este filme produzido para canais alemães e norte-americanos de tevê (ainda que tenha sido lançado nos cinemas nos EUA), e não sai muito disso: no lugar onde se crê que Buda recebeu a iluminação, milhares de budistas de reúnem - alguns chegam caminhando, outros, de joelhos -  para o ver a kalachakra (‘roda do tempo’, em sânscrito), que é basicamente uma grande mandala de areia que vai sendo cuidadosamente criada durante o evento, para então ser destruída (a areia sendo devolvida ao rio de onde foi tirada), simbolizando a impermanência.

Esse processo dura 12 dias, durante os quais os monges budistas tibetanos são ordenados, e a criação da mandala é mostrada duas vezes no filme, primeiro em Bodh Gaya, norte da Índia - onde Herzog filmou ele mesmo a maior parte, com uma câmera de 16 mm - em 2002, e no ano seguinte, em uma sala de exposições em Graz, Áustria. Em ambas as ocasiões, o Dalai Lama está presente, embora na Índia uma doença grave impedisse sua participação plena.

Montando a mandala de areia


Paralelamente, Wheel Of Time também descreve a peregrinação ao Monte Kailash, montanha tibetana de mais de 6.000 m, sagrada para budistas e hindus. Todos os anos, milhares de pessoas percorrem a rota rigorosa de mais de 50 km ao redor do pico, a uma altitude de mais de 5.000 m, levando dias para completar o trajeto (e alguns chegam a morrer no caminho), em busca da boa sorte que o sacrifício traria.

Herzog inclui uma entrevista pessoal (e não muito interessante) com o Dalai Lama, bem como tibetano ex-preso político Takna Jigme Zangpo, que passou 37 anos em uma prisão chinesa por seu apoio do Movimento para a Independência do Tibete (essa parte seria mais interessante em outro contexto, fica parecendo deslocada do tema ‘espiritualizado’).

A crítica, em geral, foi bem favorável ao filme: o escritor e crítico norte-americano de cinema Stephen Holden, por exemplo, afirma que "Wheel of Time é menos sobre palavras do que sobre mergulhar em um mundo intensamente devocional, sentindo sua força e sentindo sua extrema austeridade. O filme poderia também ter sido chamado de ‘uma imersão no budismo tibetano’. Com uma explicação mínima, coloca você no centro”. 1

O especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames exagera (e muito): “Wheel of Time nos leva de volta às paisagens visionárias de Fata Morgana.” 2

Na minha opinião, o filme tem os mesmos problemas de Jag Mandir e Pilgrimage, por exemplo, um excesso de êxtase que torna tudo monótono; são três filmes que poderiam ser média-metragens, de no máximo 40min cada. Também neste Wheel Of Time, se você não for grande conhecedor/entusiasta dos cultos tibetanos, vai ficar entre a dispersão e a impaciência. Como contraponto, Gott Und Die Beladenen e Glocken Aus Der Tiefe funcionam muito melhor sob o mesmo tema de expressões idiossincráticas de fé.

Há vários bons momentos, devo ressaltar, como o peregrino que tem a cabeça esfolada de tanto tocá-la no chão durante o trajeto, com sucessivos ajoelhamentos para reverência; ou o fiel que compra pássaros numa espécie de feirinha, só para libertá-los. Mas são boas sequências pinçadas de um todo bastante repetitivo – e sim, eu sei que é intencional, tem a ver com a ‘estética-extática’ do diretor, e até com o tema de paciência, reflexão e do caráter ao mesmo tempo concêntrico e fugidio da existência sob a óptica budista.

Devoção & sacrifício


O interesse do alemão pelo tema é evidente: “‘Foi uma profunda curiosidade em mostrar uma paisagem verdadeiramente sagrada. Essa foi uma das razões pelas quais eu queria fotografar o Monte Kailash sozinho. Eu era meu próprio diretor de fotografia para essas sequências’”. 3

Não por acaso, é o retorno a um tema recorrente em sua obra: “Em Wheel Of Time há muito pathos [sentimento, sofrimento] humano, muita espiritualidade humana, numa forma entendida pelos gregos antigos”. 4

O estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager detalha o lugar da obra universo herzogiano: “No filme, Herzog chama a mandala de representação de uma paisagem interior, ligando imediatamente a atividade dos monges ao seu próprio projeto cinematográfico”. 5 (...)

A estudiosa norte-americana de de cultura alemã Stefanie Harris vai além: "A razão pela qual Herzog foi atraído para este tópico - além da imagem recorrente de peregrinações - é provável que a mandala de areia possa ser descrita como uma 'paisagem interior', um conceito que geralmente intriga Herzog. Desde seus primeiros momentos como cineasta, voltando a Lebenszeichen, Herzog demonstrou que acredita que há uma relação entre a mandala de areia, que é a representação interna de uma paisagem, e a própria busca de Herzog por paisagens internas e visões internas". 6

Apesar disso tudo, não recomendo este filme para quem não tenha interesse específico no tema. Ao contrário de Stephen Holden, não me senti imerso na cultura retratada na obra.


Curiosidades:

- “Parece que o Dalai Lama queria que fosse eu a fazer o filme, ele vê muitos filmes”, declarou Herzog à estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli; 7

- A parte do Tibete, filmada pelo próprio Herzog, foi a primeira vez em que ele se inclui na ficha técnica por esse serviço: “Muitas vezes sou eu que faço a câmera em certas partes dos meus filmes (...) eu pedia a um operador de câmera que pusesse seu nome na ficha técnica”; 8

Em 2002, entre Invincible e Wheel Of Time, o diretor participou do longa-metragem coletivo Ten Minutes Older: The Trumpet, projeto do produtor Nicolas McClintock, que reúne nomes de peso [além de Herzog, claro, que participa com o episódio Ten Thousand Years Old, de 10min] como Bernardo Bertolucci, István Szabó, Jean-Luc Godard, Spike Lee e Wim Wenders, em curtas sob o tema do significado da vida na virada do milênio.


1 https://www.nytimes.com/2005/06/15/movies/with-herzog-inside-a-world-of-devotion.html
2 3
AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
4 7 8 HERZOG, Werner. In.:
Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
5
HARRIS, Stefanie. Moving Stills: Herzog And Photography. In.: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
6
PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.

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