quinta-feira, 23 de março de 2017

(1993) Glocken Aus Der Tiefe

Alemanha (rodado na Rússia) | 60min | super 16 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Vyacheslav Belozerov
Montagem: Rainer Standke
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: coros da Academia Espitirual de São Petesburgo, do Mosteiro de Zagorsk e do Pühtica Dormition Convent
Elenco: Werner Herzog (narração em off)


Reagimos com muito mais fervor e paixão à poesia do que à mera reportagem televisiva”. 1 (...) “Sabemos há muito tempo que o poeta é capaz de articular uma coisa profunda, inerente e misteriosa melhor do que qualquer outra pessoa. Mas, por algum motivo cineastas - especialmente aqueles que lidam com a verdade do contador - não têm conhecimento disso, enquanto continuam a negociar os seus produtos desatualizados”. 2

Glocken Aus Der Tiefe (‘Sinos das Profundezas’ em alemão, traduzido comercialmente em português como ‘Sinos do Abismo’), com o explicativo subtítulo Glaube Und Aberglaube In Russland (‘Fé e Superstição na Rússia’), é um média-metragem sobre diversas expressões religiosas – muitas bem idiossincráticas, como só poderiam ser – nas populações russas, especialmente nas bucólicas paragens da Sibéria após a queda do comunismo, em que as manifestações religiosas eram fortemente reprimidas.

Como em outros médias de Herzog, não há a preocupação de contar uma história com início, meio e fim, ou mesmo provar alguma teoria: é mais uma polaroide (com o devido tratamento extático do diretor) de algo peculiar que o diretor resolveu expor na tela. No caso, o diretor achou que aquela face mística do povo russo seria uma característica digna de apresentação (e representação), uma conexão ao mesmo tempo com a terra e com o céu.

O diretor não faz nenhum juízo de valor sobre o que mostra na tela; como bem aponta o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager: “Com a exceção à referência a superstição em seu [sub]título, de qualquer forma, Herzog nem uma única vez indica que seu ‘approach’ é cínico.” 3


Verdade fria & extática

Assim, após a impactante primeira cena, com senhores rastejando no meio de um lago congelado, somos apresentados, em curtos capítulos, a diversas crenças – algumas bem estranhas para nós, outras nem tanto –, como um exorcismo tipicamente neopentecostal, um Inri Cristo russo, um batismo ortodoxo um tanto violento, um pregador de ‘energia cósmica’, um casal de velhos que fica andando de joelhos em meio à taiga, um solitário e virtuoso tocado de sinos de igreja e um (irritante) casal de cantores mongóis, entre outros.


Até que, no final, retornamos ao tema inicial, o lago congelado, com belíssima lenda da cidade de Kitezh, que teria lugar em Nizhny Novgorod, na Rússia Central: sistematicamente invadida e pilhada por tártaros e mongóis, seus habitantes pediram que Deus a protegesse, no que ele mandou um arcanjo que mudou a cidade para o fundo de um lago [Lago Svetloyar], onde os moradores pudessem encontrar finalmente a paz, entoando hinos e tocando os sinos das igrejas por toda a eternidade.

É uma belíssima história, sem dúvida [aparentemente é popular no país], e acho inclusive que devia, se não englobar todo o média-metragem, ao menos ter mais espaço na projeção.

De qualquer forma, o filme termina com a confluência de todas as narrativas para esse lago congelado, onde novamente pessoas rastejam a fim de ouvir, através do gelo, os cânticos e sinos da cidade sagrada.

A despeito de a verdade extática de Herzog trabalhar fortemente aqui, como você verá a seguir – e embora esse tipo de falseamento em prol da narrativa seja uma das bases de sua obra, isso aqui pode incomodar um pouco por ser uma anedota conhecida e muito explícita em cena –, é uma história muito bonita, e mesmo sabendo da encenação, o final continua bonito e impactante; nas palavras do diretor:

Durante o verão, peregrinos rastejam de quatro em volta do lago, fazendo suas preces. Eu também estava lá, no início do inverno, porque queria cenas deles olhando através do gelo, tentando obter um vislumbre da cidade perdida. Infelizmente não havia ninguém ao redor, então contratei dois bêbados da cidade vizinha e lhes pedi para bancar os peregrinos. Um deles está com a cara no gelo e parece que ele está em profunda meditação. A verdade: adormeceu profundamente". 4 (...) "A cena dos bêbados que procuram cidades representa de alguma forma a Rússia; o país inteiro está secretamente à procura da Cidade Perdida de Kitezh. Russos que viram Glocken Aus Der Tiefe consideram essa sequência o melhor no filme. Compreendem a devota paixão e o fervor religioso de pessoas que olham tão atentamente para baixo, com uma concentração inabalável, para as profundezas abaixo”. 5

É uma visão ao mesmo tempo crua, sem julgamentos, e sensível, sobre um tema que, incomumente na obra do alemão, traz harmonia entre as aspirações de transcender a própria impermanência e a rudeza silenciosa e indiferente da natureza hostil e imutável em sua essência: mãos ao céu, corpos ao chão, ligações corporais e espirituais com o corpóreo e o imaterial, entre a fé e a superstição (o que as difere?). Werner Herzog nunca fora tão harmonioso em suas manifestações cinematográficas.

O próprio diretor explica: “O cinema-verdade pode capturar apenas a superfície da verdade; e há ainda no cinema um estrato mais profundo de verdade que eu tenho tentado em toda a minha vida de trabalho alcançar. Essa profunda verdade interna inerente ao cinema às vezes pode ser descoberta simplesmente por não ser burocraticamente, politicamente e matematicamente correta. Em outras palavras, eu começo a inventar. Por meio da invenção, por meio da imaginação, por meio da fabricação, me tornei mais verdadeiro que os pequenos burocratas”. 6


Inri Cristo

Nos créditos finais, uma cena de patinadores naquele mesmo gelo que abrigaria a cidade sagrada parece nos dizer para não levar tudo aquilo a sério, no sentido de ser um documentário ordinário antropológico sobre a raiz das superstições/crenças do povo russo em meio à taiga. É apenas um mosaico poético, e por que não?, bizarro, como o diretor bem curte, de histórias incomuns, que merecem ser contadas/encenadas. Ou, talvez, essa sequência represente a vida comum, mundana, que tantos levem, enquanto esses segredos místicos imemoriais residam acima e abaixo deles.

Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “A cena foi encenada, mas claro que não interessa. Esses momentos são tão extraordinários que os temos que encenar de forma a atingir uma verdade extática e profunda”. 7

Herzog, evidentemente, concorda: “O engraçado é que os russos que viram o filme adoram esse momento. Penso que, de certa maneira, a alma russa tem sua melhor explicação nessa lenda da cidade afundada. A parte difícil foi descrever a alma russa em um filme que só dura 52 minutos”. 8

Para além da bonita lenda e dos intrigantes personagens e costumes que surgem diante de nós nas paisagens frias da taiga, o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames conclui: “Embora pouco conhecido, Glocken Aus Der Tiefe oferece um dos melhores exemplos da abordagem de Herzog para o documentário, especialmente o seu uso de diálogo com scripts, detalhes fabricados e sequências encenadas. Nenhum desses dispositivos está marcado dentro do filme. É somente por causa do desempenho do diretor em locais extrafilmicos, tais como entrevistas, que nós sabemos de seu uso”. 9 (...) “De certa forma, a espiritualidade é a base de ensaio definitiva para a noção de verdade de Herzog no cinema documental”. 10

Em resumo, um belo filme, simples e, de certa forma, despretensioso; vale a pena reservar uma hora do seu dia para vê-lo, seja você fã de Werner Herzog, misticismo russo ou costumes siberianos.


Curiosidades:

– segundo o director, a chave para Glocken Aus Der Tiefe foi Viktor Danilov, um tradutor/intérprete que ele conheceu enquanto fazia uma ponta no longa germano-soviético Hard To Be A God, de Peter Fleischmann (1937–), e que o ajudou não só com os diálogos, mas também com o que seria extraído de cada entrevistado de seu filme;

Glocken Aus Der Tiefe faz parte de uma série de seis filmes sobre a Rússia, feitos por diferentes diretores [os demais são Una WertmUller, Jean-Luc Godard, Peter Bogdanovich, Nobuhiko Ohbayashi e Ken Russel];

– o filme nem começa na Rússia, mas numa república autônoma da Mongólia, e o senhor não está cantando nada religioso, mas apenas uma canção folclórica sobre a beleza das montanhas;

– os demais peregrinos no gelo na sequência inicial/final, são, na verdade, pescadores;

– um dos corais de fundo, o formado por vozes de crianças, está, na verdade, entoando uma canção de amor;

– o ‘Inri Cristo Siberiano’, Sergey Anatolyevitch Torop, tornar-se-ia bastante conhecido na Rússia como líder religioso, adotando o nome Vissarion.


1 2 HERZOG, Werner. In.: Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog, de Eric Ames. University Of Minnesota Press, 2012.
3 HERZOG, Werner. In.: PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 5 HERZOG, Werner. In.: Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
6 http://parnassusreview.com/archives/388
7 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
8 HERZOG, Werner. In.: Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
9 10 AMES, Eric.
Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.

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