quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

(1999) Gott Und Die Beladenen

Alemanha (rodado na Antígua, na Guatemala e no México) | 43min | vídeo | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Martin Choroba e Joachim Puls
Som: Francisco Adrianzen
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Jorge Vignati
Música: excertos de Charles Gounod, Orlando di Lasso e Giovanni Pierluigi da Palestrina
Elenco: Donald Arthur, Muriel Maselli


Parte de uma série alemã de tevê chamada 2000 Years Of Christianity, Herzog dirige um episódio, média-metragem, que no site do alemão está descrito como “um filme sobre a conquista da América Latina pela Igreja Católica e as consequências para a vida religiosa de hoje naquela região”.

E, como explica o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames, “Ao contrário dos outros documentários de Herzog, este faz um argumento explícito. Com a conquista espanhola dos povos mesoamericanos, Herzog narra que, ‘a fé católica foi forçada a... uma nação inteira’". 1
Filme do Herzog sem Herzog é esquisito, né. Mas vamos com a narração de Donald Arthur (1937–2016) mesmo, que parece vinda dos documentários ‘mondo’ dos 1970s, e peca pelo excesso de didatismo. A vinheta da série é tosca, assim como as encenações são cafonas, ao estilo The History Channel. E a abordagem é semisensacionalista, à ‘Tabu’, do National Geographic, com teorias demasiadamente simplistas para tão vasto tema.

Basicamente, enquanto pergunta a todo momento “quem é Jesus Cristo para essas pessoas” (especialmente quando mostra Cristo morto, Cristo crucificado e afins), o filme mostra cultos bastante sincréticos dos países escolhidos – o que pode chocar o público-alvo, europeu, mas definitivamente faz parte do cotidiano latino.

Quem?

Então dá-lhe cenas guatemaltecas de cultos com velas, cachaças, ex-votos e charutos toscos enormes (atém crianças fumam) direcionados especialmente ao Maximón, o conhecido São Simão. Aqui ele é “parte de Deus maia, parte santo católico, uma figura de origem mista indígena e européia, a resultante fusão de elementos de duas tradições sincréticas. Mais do que apenas um vestígio do passado colonial distante, a figura de Maximón-San Simón tem uma função viva na Guatemala contemporânea. Seus rituais e suas representações são fluidos e mudam constantemente”. 2

É bem estranho que este filme tenha sido patrocinado, em parte, pela Igreja Católica, visto que, na maior parte do tempo, o ‘descobrimento’ é narrado de forma bastante crua, com o notável uso gráfico da Historia General De Las Cosas De La Nueva España, também conhecida como Códex Florentino, que confere aos relato uma crueza e farta ilustração do horror que foi a invasão dos ibéricos ao Novo Mundo.

Códex

Eric Ames aponta: “O cristianismo era um ‘fardo’ para ser (literalmente e figurativamente) suportado por pessoas colonizadas, e continua sendo assim até hoje - uma idéia tornada vívida pela cena de abertura do episódio” [em sequência à imagem do Cristo carregando a cruz, surgem várias cenas de gente pobre carregando fardos imensos pelas ruas da cidade]. 3 (...) “Como o filme sugere, no entanto, a Conquista resultou não apenas na perda e opressão traumática, mas também em atos criativos de apropriação e transformação, que em alguns casos, paradoxalmente, permitiram a sobrevivência dos mesmos mitos indígenas e rituais que a igreja procurou substituir”. 4

Para que as coisas não fiquem tão estranhamente negativas para a Igreja, há um contraponto, como lembra o estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager: “Na versão para a televisão, a história de violência é balanceada pela redentora história do Frei Bartolomé de las Casas, padre do século 16 que advogou pelos direitos dos índios e é apresentado a nós como a única voz que se levantou contra a violência cometida contra os astecas, também denunciando as conversões forçadas”. 5

Maximón

Mas  o que fica estranho mesmo é o final, em que o narrador conclui que “A mensagem de Cristo, a mensagem do amor: foi recebida pelos cristãos em cada século, em todas as partes do mundo, sempre de novas formas. Novas abordagens para a religiosidade se desenvolveram a partir dessa única fonte, incluindo as formas mais estranhas de devoção cristã. A história permitiu que eles crescessem como flores coloridas, e sempre combina tradições antigas com novas, formas completamente pessoais de fé cristã, que muitas vezes se envolveram em conflitos uns com os outros. Ninguém, no entanto, pode reivindicar o direito de julgar essas formas sérias de fé pessoal. Pois o amor e a tolerância formam o núcleo da mensagem cristã”.

Parece uma grande provocação de Herzog, e que aparentemente ninguém da produção notou, pois, como em aponta Eric Ames, “Nada nos quarenta e cinco minutos [de filme] leva a essa conclusão. Pelo contrário, contradiz diretamente o argumento do filme sobre a coerção, o fascínio pelas formas de resistência e a proliferação de questões”. 6

Enfim, é um filme confuso, simplista, mal resolvido e que não tem praticamente nada de hergoziano; não recomendo (a única coisa de que gostei foi o sempre eficiente uso da música clássica por parte do diretor alemão) – veja outro filme da #MaratonaHerzog, qualquer um mais bem avaliado.


Curiosidades:

– há (pelo menos) três versões do filme: Neue Welten: Gott Und Die Beladenen, exibido na televisão alemã em 2000, como parte da minissérie (mas lançada em DVD somente 2007), sendo a única versão narrada por Herzog; a segunda versão, a que vi, com o título God And The Burdened, produzida para o mercado externo, e lançada diretamente em DVD, em 2007, com a narração de Donald Arthur; e, finalmente, a terceira versão, mais curta e sem narração (apenas intertítulos e legendas), sob o título Christ And Demons In New Spain;

– para confundir ainda mais, segundo Eric Ames, Werner Herzog e Paul Cronin se referem ao original alemão por seu subtítulo, traduzido como The Lord And The Laden, mas o título aliterativo não se encontra em nenhum lugar do filme ou do seu material de propaganda;

– Donald Arthur também narrou em off a versão em língua inglesa de Schrei Aus Stein;

– a série 2000 Jahre Christentum é uma curiosa coprodução entre a tevê pública alemã (ARD) e a Tellux-Film, braço midiático da igreja católica no país;

– sobre o convite para fazer o episódio, “Eu disse a eles que queria fazer algo sobre a Igreja na América Latina, mas que eles não deveriam esperar nada enciclopédico porque sabia que queria ir a um lugar muito específico (o santuário ao deus maia Maximón em San Andrés Itzapa na Guatemala)". 7


1 2 3 4 6 7 AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.


Nenhum comentário:

Postar um comentário