Alemanha (rodado no Peru, na Holanda, na Alemanha, na França e nos EUA) | 95min | super 16 mm |cor/p&b
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Florian Fricke (Popol Vuh)
Elenco: Werner Herzog, Klaus Kinski, Eva Mattes, Claudia Cardinale, Beat Presser, Guillermo Rios, Andres Vicente, Justo Gonzales, Benino Moreno Placido, Barão e Baronesa von d. Recke, José Koechlin von Stein, Bil Pence
“Não é um filme sobre Kinski nem um filme sobre mim, é um filme sobre uma relação, sobre uma relação artística muito pronunciada, quase perigosa. Foi, em muitos sentidos, um paradigma do processo criativo, tão intensa que – enquanto trabalhávamos – já tinha pensado em transpô-lo para filme. Mas me ajoelho e agradeço a Deus por não tê-lo feito àquela altura; foi bom ter esperado dez anos para fazê-lo.” 1
O ano é 1971. Klaus Kinski (1926–1991), excursionando com o espetáculo Jesus Christus Erlöser
(Jesus Cristo Salvador), no qual interpretava o próprio, discute
furiosamente com o público. Em seguida, Herzog nos apresenta o prédio em
que morou com o ator quando jovem, e nos conta histórias sobre seus
acessos de fúria constantes e incontroláveis. Daí vamos para as já
conhecidas histórias insanas ocorridas nos sets de Aguirre, Der Zorn Gottes e Fitzcarraldo,
que vão de ator quase matando membro da equipe a diretor ameaçando ator
de morte, passando por índios figurantes se oferecendo para matar o
ator.
Como explica o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager, “De certa forma, Mein Liebster Feind não se resume apenas a recontar o passado, ou a contar a história de forma que Herzog venha a aceitar a perda, mas também é sobre como esse objetivo é alcançado de forma cinematográfica. Porque tanto de seu relacionamento ocorreu em filme, que chegar a um acordo com o seu fim pode ser feito melhor em filme também.” 2
Porém,
num exercício não só de memória e homenagem, mas também de exorcismo,
Herzog sempre intercala essas histórias com cena e depoimentos, digamos,
favoráveis a Kinski, mostrando que ele sabia ser gentil e afetuoso
quando queria: há depoimentos de Eva Mattes e Claudia Cardinale falando
muito bem dele, assim como, após uma cena em que, num festival de
cinema, ator e diretor trocam um abraço carinhoso, de verdadeiros
amigos, fazendo com que este desabafe, dizendo que sentia falta daquele.
Às vezes era difícil |
Aliás, quando perguntado pelo estudioso norte-americano de cinema Paul Cronin se sente falta de Kinski, Herzog afirma: “Como eu, Kinski era uma pessoa muito física, mas de maneira diferente. Nós nos complementamos bem porque ele juntou todos. Ele atraiu o rebanho magneticamente e eu o segurei. Kinski foi feito para mim, para o meu cinema. Às vezes quero colocar meu braço ao redor dele novamente, mas acho que eu só sonho com isso porque eu tenho essa imagem antiga de nós dois. Não me arrependo de nenhum momento, nenhum. Talvez eu sinta falta dele. Sim, de vez em quando eu sinto falta dele”. 3
O caráter de ‘exorcismo’ do filme fica claro neste depoimento: “Sinto-me satisfeito por ter decidido fazer o filme muitos anos depois da morte de Kinski, quando o turbilhão amainara e minha mágoa desaparecera. Agora olho para as situações absurdas com humor (…). O humor com que olho para nós dois é algo de novo, algo que apenas se tornou possível devido ao mistério do tempo. A passagem do tempo muda muito as coisas.” 4Isso
fica claro pelo modo como o diretor escolhe encerrar o filme: Klaus
Kinski, em um campo ensolarado, encantado, brincando com uma borboleta,
que insiste em pousar em seu corpo, como que hipnotizada. É uma cena
belíssima e tocante, que deixa claro o quão importante o ator maluco era
para o diretor igualmente maluco.
Às vezes era tranquilo |
Na opinião da crítica norte-americana de cinema Janet Maslin, “Herzog usa o documentário não só para invocar histórias de Kinski, mas também para contemplar o autêntico (e errático) gênio do ator". 5
Kinski teria sido uma ator medíocre e de carreira errática sem o espírito e a paciência de Herzog, e este não teria feito seus maiores clássicos sem a impetuosidade que ardia no espírito do astro. Foi uma parceria ao mesmo tempo improvável e inevitável.
Segundo o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942-2013), "’Mein Liebster Feind’ é sobre dois homens que queriam ser dominantes, que tinham todas as respostas, que estavam inseparavelmente unidas em amor e ódio, e que criaram um trabalho extraordinário - enquanto o tempo todo um se ressentia com a contribuição do outro.” 6
Sobre a sequência de Cobra Verde, em que Klaus Kinski, exausto física e mentalmente sucumbe à beira de uma praia, o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames teoriza: “Herzog alega a voz que Kinski realmente morreu como resultado de sua intensidade e exaustão ‘apenas desta cena’, mesmo embora sua morte tenha ocorrido muito mais tarde, em outro lugar, e fora da câmera. Ao fazer essa afirmação, como um estudioso observou, Herzog se atribui retroativamente um grau de responsabilidade pela morte real de Kinski. Por que ele deveria fazer isso?” 7
A resposta óbvia é que Herzog se sentiu responsável por ‘usar’ a loucura e a intensidade de Kinski até a exaustão, e esse tipo de questionamento, mesmo que não ‘indo pra frente’, mas parte de todo o processo pelo qual o diretor passou ao lidar, fazendo Mein Liebster Feind, de passar a limpo todas as dificuldades e vicissitudes da incrível, mágica e trágica, relação entre ele e seu ator preferido.
A resposta óbvia é que Herzog se sentiu responsável por ‘usar’ a loucura e a intensidade de Kinski até a exaustão, e esse tipo de questionamento, mesmo que não ‘indo pra frente’, mas parte de todo o processo pelo qual o diretor passou ao lidar, fazendo Mein Liebster Feind, de passar a limpo todas as dificuldades e vicissitudes da incrível, mágica e trágica, relação entre ele e seu ator preferido.
Mas o que fica é o que importa |
O crítico de cinema Inácio de Araújo tem boas conclusões sobre a obra: “Não é apenas a revelação dessas histórias que faz o encanto do filme, e sim o encontro de duas formas peculiares de loucura.” 8 (…) “Todo mundo tem um amigo especial. Poucos têm um inimigo do peito como Klaus Kinski. Isto é, a afinidade entre ambos parecia vir não das semelhanças, mas daquilo que os diferenciava.” 9
Mesmo que você não tenha visto todas as parcerias Herzog + Kinski, mesmo que você não tenha assistido a nenhuma delas, veja este filme, obrigatório não só para a obra do alemão, ou mesmo para o cinema, mas sim como tratado sobre as relações humanas. Uma história duradoura de amor & ódio. Denso e tenso, terno e eterno. Veja logo.
Curiosidades:
– O espetáculo Jesus Christus Erlöser, de 1971, virou documentário em 2008 e está na íntegra no YouTube (legendas em inglês);
– Klaus Kinski abandonou esse espetáculo para estrelar sua primeira parceria com Werner Herzog, Aguirre, Der Zorn Gottes;
– os demais filmes que fizeram juntos são Nosferatu, Woyzeck, Fitzcarraldo e Cobra Verde;
– Herzog afirma que escreveu o roteiro “em 15 minutos, após 72 horas sem dormir, vendo um documentário de TV contemplativo e um filme pornô, e concluindo que o segundo aproximou-se mais da verdade”. 10
1 4 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
2 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
3 CRONIN, Paul. Herzog On Herzog. Faber & Faber, 2001.
5 MASLIN, Janet. In: http://www.nytimes.com/movie/review?res=9B0CE1D9123BF930A35752C1A96F958260
6 EBERT, Roger. In: http://www.rogerebert.com/reviews/my-best-fiend-2000
7 AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
8 ARAÚJO, Inácio de. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2710199903.htm
9 ARAÚJO, Inácio de. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0902200127.htm
10 HERZOG, Werner. In: https://www.theguardian.com/friday_review/story/0,,296777,00.html
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