quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

(2001) Pilgrimage


Alemanha (rodado na Rússia e no México) | 18min| super 16 mm| cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Luz-Maria Rojas
Som: Francisco Adrianzen
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Jorge Paccheco
Música: John Tavener
Elenco: peregrinos russos e mexicanos anônimos

O site oficial do diretor define Pilgrimage como: “Um filme sobre a peregrinação a Virgem de Guadalupe, ao túmulo de São Serguei em Zagorsk/Rússia e outros lugares ao redor do mundo, mas principalmente um filme (e música) sobre a espiritualidade profunda, o fervor religioso e o profundo sofrimento humano dos peregrinos”.

Feito sob encomenda para a BBC, como parte de uma série sobre fé e peregrinação, Pilgrimage exibe quase 20 minutos, sob intensa música clássica (repetitiva, quase mântrica), de peregrinos exibindo feições ao mesmo tempo de aceitação e superação do sofrimento físico, dos limites da carne – em sequências, sem ligação umas com as outras (sequer sabemos algo sobre os fiéis), de intensa dramaticidade.
fé & escuridão

Herzog explica mais sobre o projeto: “Originalmente, eu tinha alguns sons realistas na trilha sonora, que eu tinha gravado na basílica, mas no momento em que ouvi a música do [compositor inglês] John [Tavener (1944–2013)], soube que tinha que jogar tudo fora, porque o filme e a peregrinação teriam vindo abaixo, trazidos por alguns eventos pseudorrealistas, quase ordinários”. 1

Uma coisa interessante é que os objetos de culto jamais são mostrados; toda a contemplação extática do filme é direcionada aos rostos e corpos das pessoas, nunca às imagens religiosas – isso é, sem dúvida, uma grande ideia, de bastante impacto.

Pilgrimage tem inegável coerência na obra do diretor, seja pelo fato de que ele mesmo já peregrinou em grande estilo (epopeia contada no livro Of Walking In Ice, sobre o qual falo um pouco aqui), seja pela verdade extática que o conjunto do filme traz, ou mesmo porque a fé em grande escala já foi retratada em diversos filmes seus, como God’s Angry Man, Huie’s Sermon, Glocken Aus Der Tiefe e Gott Und Die Beladenen.

O próprio Herzog liga este filme a outras obras suas, como Wodaabe, Die Hirten Der Sonne, por exemplo: "Apenas aconteceu de ver os dromedários sendo conduzidos através da ponte, no meio de todos aqueles carros. Para mim é uma cena de real e profunda beleza, similar à última cena de Pilgrimage, com as mulheres cruzando o rio congelado”. 2

Porém, na prática, a obra não funciona muito bem – são vinte minutos da mesma ideia, da mesma alegoria, que, uma vez entendida, não deixa mais nada a ser apreciado como novidade. Com um terço de projeção já tive a sensação de ver um grande videoclipe, como ocorreu, de certa forma, ao assistir a Jag Mandir; tive a impressão de que o filme tenta ser tão puramente transcendente que acaba por lhe faltar metafísica.
fé & luz

Apesar disso, Herzog justifica até mesmo o fato de o filme não ter história/narrativa ou diálogos, num tom, verdade seja dita, muito mais de quem está certo do que fez e faz do que quem tenta justificar: as escolhas de insucesso “Não vejo Pilgrimage como um filme mudo porque a música está inextricavelmente ligada às imagens”.

A crítica em geral, como a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, também elogia bastante o curta-metragem: “Entre extensões de gelo e rochedos batidos pelas ondas, o filme surge como uma homenagem feita pelo homem ao canto submisso e contínuo do mundo no seu esplendor extático, sinfonia de imagens que se sucedem, procurando o centro espiritual do homem, o equilíbrio incerto que está na história, nas pedras, na água milenar, no ressoar rítmico do vento”. 4

Apesar de o filme não ter me agradado, eu evidentemente reconheço méritos artísticos nele, entendo quem se encante, gosto de várias soluções audiovisuais/sensoriais que ele apresenta , e acho que vale a pena, para quem se interessa pelo tema ou pelo diretor, dar uma conferida.

Como diz o estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager, “Herzog deixa claro que as pessoas fazendo peregrinações em Pilgrimage estão enfrentando sua dor em nome do fervor, do sofrimento, e, é claro, em nome do êxtase" 5. Então, quem sabe, a reverência a essa (mesmo que tentativa de) transcendência não te chama a atenção também?



Curiosidades:

– a epígrafe do filme, atribuída ao escritor alemão Thomas à Kempis (1380–1471), na verdade foi inventada por Herzog;

– entre as sequências de peregrinos russos, há cenas reutilizadas de Glocken Aus Der Tiefe (as pessoas rastejando no gelo);

– tem o filme completo no YouTube.


1 2 3 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001
4 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007

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