Alemanha (Austrália) | 100min | 35 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Claus Langer
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Gabriel Fauré, Ernst Bloch, Richard Wagner, Klaus-Jochen Wiese e música tradicional aborígene de Wandjuk Marika
Elenco: Bruce Spence (Lance Hackett), Wandjuk Marika (Miliritbi), Roy Marika (Dayipu), Ray Barrett (Cole), Norman Kaye (Baldwin Ferguson), Ralph Cotterill (Fletcher) Nick Lathouris (Arnold), Basil Clarke (Judge Blackburn), Ray Marshall (Coulthard), Gary Williams (Watson), Tony Llewellyn-Jones (Fitzsimmons)
Há certo consenso sobre a década de 1980 ser a menos inspirada de Herzog (apesar de Fitzcarraldo, ou especialmente por causa dele), devido à indefinição entre abraçar o mainstream e manter seu caráter independente. E isso fica escancarado, mais do que eu qualquer outra realização do período, neste Wo Die Grünen Ameisen Träumen (Onde Sonham As Formigas Verdes).
Nas palavras do estudioso alemão de cinema Thomas Elsaesser (1943–): “Em seu primeiro filme rodado totalmente em inglês, é certamente consciente do desafio de se dirigir a dois tipos de audiência: uma para quem um roteiro bem construído é uma traição ao cinema, e outra para quem um filme sem isso não é realmente cinema”. ¹
Ordem no caos primordial |
A história toda, interessante, até, é apresentada em menos de dez minutos: uma grande mineradora pretende explorar urânio no deserto australiano, mas encontra a oposição de uma tribo aborígene, que considera aquela terra sagrada, por ser onde moram e sonham as sagradas formigas verdes do título do filme; um dos geólogos se compadece da causa dos indígenas, e se vê no meio dessa disputa entre brancos e negros, passado e presente, civilização e natureza [que vai parar nos tribunais].
O próprio Herzog parece não muito interessado na narrativa convencional, nota Elsaesser: “uma falta de interesse na causalidade, por exemplo, é evidenciada no modo como ele maneja as transições de frame para frame, assim como de cena a cena. Em vez de uma narrativa construída com sequência dramáticas, Herzog trabalha em unidades isoladas. O corte é meramente um jeito de buscar outro bloco situacional, para se mover de outro espaço ou até outro espaço”. ²
Além de essa história ser toda apresentada de uma vez, sem mistérios ou reviravoltas, e de os núcleos de personagens irem e virem de forma desinteressante, há o problema de os personagens serem todos esquemáticos: temos os homens brancos de negócios, sempre insensíveis e cartesianos, incluindo um racista operador de escavadeira; os aborígenes, que, exceto por um ex-piloto de avião, alcoólatra, são todos naquele esquema de “sabedoria meio silenciosa e pura dos povos antigos”; e, no meio disso, Lance Hackett, o geógrafo que simboliza a ponte impossível entre esses dois mundos.
Obstinação |
Indecisão |
Para o crítico norte-americano de cinema Vincent Canby (1924–2000), “Herzog
lida com essa narrativa de forma eficiente, mas quase com relutância,
como se ele não pudesse se importar menos sobre o que acontece em
seguida. Suas principais preocupações são muito mais místicas, e, às
vezes, tão conscientemente distorcidas que ele parece estar dizendo que
qualquer interpretação específica dos eventos seria um desserviço para o
santo mistério da própria vida”. ³
Dá certa frustração o modo como Herzog, de certa forma, estraga a própria ideia de filme, sem levá-la a fundo e, nenhum momento, e deixando tudo correr de forma frouxa – coisa que não funciona bem aqui, uma vez que, ao contrário de seus filmes típicos, se apresenta a nós uma história que promete começo, meio e fim. O filme até se desenvolve, mas por inércia, não por esforço do diretor.
Até coisas que podemos considerar como qualidade do diretor, como o interesse em cenas/personagens que não necessariamente têm a ver com o filme, mas que, uma vez lá, têm seu lugar, aqui surgem deslocadamente: o velho aborígene, último de sua tribo, considerado mudo pelos autos do processo porque sua língua não é compreendida por mais ninguém, não tem o impacto esperado; e a subtrama da senhora à procura de seu cão que teria sumido nos túneis das minas só me causou irritação.
Outros problemas: Hackett, o geólogo virtuoso, embora simpático, não é o típico personagem hergoziano, desajustado, cheio de ira e/ou angústia, que carrega o filme e toda a existência nas costas. É o ‘herói’ da história, observa Elsaesser, “apenas no sentido clássico e limitado de motivar o progresso da narrativa, servindo de intermediário entre as facções opostas do filme enquanto mediador das simpatias da audiência”. 4
Isso deixa a história sem protagonista: não é um filme sobre ele, nem sobre os aborígenes, nem sobre os mineradores, tampouco sobre as formigas verdes. A condução da história, dada que semidocumental, é previsível, e levada a cabo por Herzog com pouco afinco, e o final não esclarece muita coisa. Então o filme é uma porcaria completa, certo?
Vamos com calma. O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) nos dá pistas valiosas: “Herzog disse que pensa em imagens, não ideias, e que se ele pode encontrar as imagens corretas para um filme, não fica preocupado com a sua mensagem. (...) Mas há uma realidade, no entanto, nesse filme estranho, e ela sai dos dois conjuntos conflitantes de crenças”. 5
Pode-se dizer que temos aqui o motivo herzogiano da natureza primordial, em seu caos tão bem ordenado (representada pelos aborígenes), a ser corrompida pela presença humana, no caso branca e ocidentalizada. O contato com esse ambiente selvagem, inóspito, impenetrável para nosso conhecimento, leva à inexorável entropia, à degeneração, à ruína. São modelos inconciliáveis, que, ao se tocarem, geram apenas desequilíbrio – as sagradas formigas que deixam de sonha tudo que existe –
Nisso temos claro parentesco com Fata Morgana: o filme começa e termina com imagens hipnóticas de um redemoinho tempestuoso de areia no deserto; as formigas verdes sonham o mundo e então deixam de sonhá-lo, ou vão sonhá-lo em outra parte. Representam uma existência perdida no tempo, da humanidade sem passando, sem rumo, sem memória. Degeneração – e a placidez do nada-haver vai se instalar em outro lugar, distante daquelas pessoas tão preocupados com a materialidade do presente, para restaurar seu equilíbrio de assombro e indiferença.
Dá certa frustração o modo como Herzog, de certa forma, estraga a própria ideia de filme, sem levá-la a fundo e, nenhum momento, e deixando tudo correr de forma frouxa – coisa que não funciona bem aqui, uma vez que, ao contrário de seus filmes típicos, se apresenta a nós uma história que promete começo, meio e fim. O filme até se desenvolve, mas por inércia, não por esforço do diretor.
Até coisas que podemos considerar como qualidade do diretor, como o interesse em cenas/personagens que não necessariamente têm a ver com o filme, mas que, uma vez lá, têm seu lugar, aqui surgem deslocadamente: o velho aborígene, último de sua tribo, considerado mudo pelos autos do processo porque sua língua não é compreendida por mais ninguém, não tem o impacto esperado; e a subtrama da senhora à procura de seu cão que teria sumido nos túneis das minas só me causou irritação.
Outros problemas: Hackett, o geólogo virtuoso, embora simpático, não é o típico personagem hergoziano, desajustado, cheio de ira e/ou angústia, que carrega o filme e toda a existência nas costas. É o ‘herói’ da história, observa Elsaesser, “apenas no sentido clássico e limitado de motivar o progresso da narrativa, servindo de intermediário entre as facções opostas do filme enquanto mediador das simpatias da audiência”. 4
Isso deixa a história sem protagonista: não é um filme sobre ele, nem sobre os aborígenes, nem sobre os mineradores, tampouco sobre as formigas verdes. A condução da história, dada que semidocumental, é previsível, e levada a cabo por Herzog com pouco afinco, e o final não esclarece muita coisa. Então o filme é uma porcaria completa, certo?
Vamos com calma. O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) nos dá pistas valiosas: “Herzog disse que pensa em imagens, não ideias, e que se ele pode encontrar as imagens corretas para um filme, não fica preocupado com a sua mensagem. (...) Mas há uma realidade, no entanto, nesse filme estranho, e ela sai dos dois conjuntos conflitantes de crenças”. 5
Pode-se dizer que temos aqui o motivo herzogiano da natureza primordial, em seu caos tão bem ordenado (representada pelos aborígenes), a ser corrompida pela presença humana, no caso branca e ocidentalizada. O contato com esse ambiente selvagem, inóspito, impenetrável para nosso conhecimento, leva à inexorável entropia, à degeneração, à ruína. São modelos inconciliáveis, que, ao se tocarem, geram apenas desequilíbrio – as sagradas formigas que deixam de sonha tudo que existe –
Nisso temos claro parentesco com Fata Morgana: o filme começa e termina com imagens hipnóticas de um redemoinho tempestuoso de areia no deserto; as formigas verdes sonham o mundo e então deixam de sonhá-lo, ou vão sonhá-lo em outra parte. Representam uma existência perdida no tempo, da humanidade sem passando, sem rumo, sem memória. Degeneração – e a placidez do nada-haver vai se instalar em outro lugar, distante daquelas pessoas tão preocupados com a materialidade do presente, para restaurar seu equilíbrio de assombro e indiferença.
Ecos de Fata Morgana |
Como decreta Vincent Canby, sobre o filme: “Como narrativa convencional, é extremamente simples e bastante descuidado, mas nunca simplório, sendo repleto de momentos de loucura inspirada e sabedoria. (...) Outro capítulo fascinante, às vezes enlouquecedor, em sua contínua obsessão com o destino da Terra e o de si mesmo”. 6
Uma chave para o entendimento sobre o filme vem da fala de um dos aborígenes: “Vocês homens brancos estão perdidos. Vocês não compreendem a terra. Muitas questões tolas. Sua presença nesta terra chegará ao fim. Vocês não têm nem senso, nem propósito, nem direção”.
Pode-se dizer, enfim, que não é um filme estranho à filmografia do diretor – embora um filme não devesse depender de contexto para ser bom, e este, analisado isoladamente, é fraco, irregular –, mas, como já dito, patina nessa indefinição entre a convenção e a experimentação, não sendo satisfatório para nenhuma das duas audiências.
O próprio Herzog não tem o filme em sua mais alta conta: “Bem, o filme é bastante óbvio em ter algum tipo de ‘mensagem’. Ele tem um tom tão hipócrita que eu gostaria de ter cortado do filme, ele cheira mal. (...) O filme não é de todo ruim, só tem um clima que eu não suporto. Ainda gosto das sequências do início e do final, as imagens como se viessem do fim do mundo”. 7
De fato, as sequências desérticas, que remetem ao magnífico Fata Morgana, são o que há de melhor no filme. Mas aguardemos que esse glacê ‘de protesto’ um tanto simplório tenha ficado inteiramente neste filme e em Ballade Vom Kleinen Soldaten e os pequenos apocalipses herzogianos do dia a dia retornem nos próximos capítulos da #MaratonaHerzog.
Curiosidades:
– o filme venceu o German Film Awards de 1984 nas categorias ‘melhor filme’ e ‘melhor fotografia’;
– Herzog faz uma ponta não creditada como um dos advogados da cena do julgamento;
– toda a lenda das formigas verdes foi inventada por Herzog, e aparentemente não há nada parecido com isso no folclore aborígene;
– sobre próprio o conceito aborígene de ‘sonho’, Herzog afirma: “tenho que ter cuidado quando se discute conceitos como ‘sonho’, porque não sou especialista. (...) Algo como 20.000 anos de história nos separa deles. (...) Meu entendimento muito limitado é que as histórias oníricas aborígenes e seus mitos explicam as origens de tudo no planeta e foram especialmente importantes para os indígenas pré-coloniais. Posso dizer que o filme não é certamente o ‘sonho’ deles, é o meu”; 8
– apesar disso, no nordeste da Austrália realmente existem formigas verdes endêmicas, as Rhytidoponera metallica, chamadas de green-head ants (não se sabe sabe se elas sonham);
–a história do artefato secreto apresentado na corte é baseada em um incidente verídico;
– a disputa ‘indústria x aborígenes’ foi inspirada em um caso real dos 1970s, em que uma empresa suíça de extração de bauxita disputou (e venceu na Justiça) o terreno da mineração com os locais, a tribo Yolngu;
– a crítica em geral achou que o filme ficou desconfortavelmente colocado entre a ficção e o documentário, e o jornalista australiano Phillip Adams, particularmente irritado, reclamou que o filme deixava implícito que o governo do país estava contra os aborígenes e fez até um artigo chamado Dammit Herzog, You Are A Liar!;
– o filme é dedicado à mãe de Herzog, que morreu quando o filme estava em andamento;
– o diretor de fotografia Jörg Schmidt-Reitwein passou quatro semanas em Oklahoma apenas para perseguir tornados para as sequências inicial e final;
– dois nomes de personagens do filme, ‘Baldwin Ferguson’ e ‘Miss Strehlow’, têm a ver com antropólogos pioneiros no estudo do aboríneges, respectivamente Baldwin Spencer (1860–1929) e Theodor George Henry Strehlow (1908–1978);
– além do pagamento em dinheiro, os aborígenes pediram pagamento em fitas de kung fu, as quais eram sempre vistas, em grupo, após a jornada diária de filmagem;
– sobre a história paralela de Miss Strehlow, que procura paciente e obstinadamente seu cão perdido, Herzog diz, nos comentários do DVD do filme: “Não tinha nada a ver com o enredo central; mas, às vezes, eu não sei como isso acontece, histórias como essa, sobre um cão perdido, subitamente se tornam mais importantes que o começo de um filme normal”.
¹ ² 4 ELSAESSER, Thomas. An Anthropologist's Eye: Where The Green Ants Dream. In: The Films Of Werner Herzog: Between Mirage And History, de Timothy Corrigan. Methuen, 1986.
3 6 http://www.nytimes.com/1985/02/08/movies/where-the-green-ants-dream.html
5 http://www.rogerebert.com/reviews/where-the-green-ants-dream-1984
7 8 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
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