segunda-feira, 14 de outubro de 2013

(1970) Fata Morgana

Alemanha (rodado na República Centro-Africana, em Camarões e nas Ilhas Canárias)
79min | 35 mm | cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Som: Herbert Prasch
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Elenco: Lotte Eisner (narração), Wolfgang von Ungern-Sternberg, James William Gledhill, Eugen des Montagnes
Trilha sonora: canções de Leonard Cohen, Blind Faith, Couperin, Mozart, Handel, The Third Ear Band


[Werner Herzog é] o mais metafísico dos autores de cinema.” (Gilles Deleuze) ¹

Câmera estática. Um avião sabe-se lá vindo de onde e transportando quem pousa na pista de um aeroporto qualquer. A imagem é repetida oito vezes, com diferentes cortes, durante quase quatro minutos, praticamente só com som ambiente (uma leve trilha instrumental surge ao final da sequência).

Ficamos em dúvida se é o mesmo avião em vários takes, ou diversos aviões durante um dia inteiro, como se víssemos uma miragem e duvidássemos dela e de nossa sanidade. As imagens vão ficando menos distinguíveis e distorcidas com o forte calor que emana da pista de pouso, e então estamos no deserto.

O filme já começa em clima de miragem

Um pouco documentário, um pouco road movie, um pouco ficção científica, um tanto de nada disso, Fata Morgana (nome dado a um tipo de miragem) consiste basicamente de imagens aéreas do Saara (feitas à época de Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika) e outras tomadas da região feitas com uma câmera instalada em cima de um ônibus, guiado pelo diretor.

Enquanto isso, a crítica de cinema franco-alemã (e grande amiga do diretor) Lotte Eisner (1896-1983) lê trechos do Popol Vuh (mito da criação maia) e textos de autoria de Herzog, enquanto canções que vão de Leonard Cohen a Mozart cortam (contam?) o silêncio do deserto.

O filme divide-se em três partes: Criação, em que a narração sobre os primórdios do Universo é emoldurada pelas imponentes passagens desérticas, quase sem vestígios de civilização; Paraíso, em que narrações paradisíacas surgem enquanto humanos são mostrados em diversos momentos no deserto; e Idade Do Ouro, em que imagens surreais e algo patéticas sugerem degradação e desarmonia universais.


Imensidão


Povoamento


Esquisitice


O Popol Vuh narra, em linhas gerais, as três tentativas de os deuses criarem os homens. Nas duas primeiras, eles não falavam direito, então foram destruídos. É mais uma vez a visão herzogiana da Criação que não deu certo. Deuses nada bondosos atirando a um ambiente inóspito e hostil homens e animais. Todo o conhecimento, todas as realizações, todo esforço humano é ao mesmo tempo patético e grandioso, fascinante em sua inutilidade.

No deserto, o tempo não passa, nada muda; a paisagem é sempre a mesma, inóspita, apesar das tentativas de sobrevivência de humanos e animais. É um eterno retorno nietzschiano, tal como a sequência inicial dos aviões pousando, sem início nem fim. Herzog busca "a melancolia na contemplação de alguma perda não especificada, mas abissalmente triste”,² nas palavras da estudiosa de cinema alemão Erica Carter.

Temos belas músicas, belas imagens, mas o clima do filme é sempre de solidão, isolamento, como se a Criação perturbasse a quietude do não-ser – este sim o estado ideal das coisas – e tudo que passasse a existir fosse intrinsecamente uma forma de destruição. É a perplexidade diante da natureza. Criação versus destruição, civilização versus ruína... como disse Herzog, “o mundo está cheio de contradições e de tristeza”. ³


Contradições


Tristeza

Herzog planejava fazer uma ficção científica sobre alienígenas de Andrômeda que chegavam a Terra, pesando que todo o planeta seria como o Saara, desértico e praticamente despovoado. Porém, a força das imagens logo o fez ver que estas falariam muito mais por si sós, e que qualquer abordagem tradicional de roteiro seria limitadora. “As reações ao que eu estava vendo ao redor de mim eram como as de um bebê de dezoito meses de idade, explorando o mundo pela primeira vez.”4

Ainda segundo o estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager, “o filme é menos sobre a África do que sobre nossa inabilidade para diferenciar o mundo como imaginamos do mundo como realmente é. Herzog, em outras palavras, quer mostrar todo ato de ver como uma miragem, porque a visão tem lugar primeiro na mente. (...) Fata Morgana é um filme que é fundamentalmente sobre a visão, sobre ver”. 5

Essa questão sobre enxergar, sobre ver as coisas pela primeira vez, ou mesmo sobre a cegueira, obviamente já foi retratada na epifania dos moinhos-de-vento em Lebenszeichen, nos anões cegos de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen e retornaria nos anos seguintes em filmes como Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit e Jeder Für Sich Und Gott Aegen Alle, ou mesmo no recente Cave Of Forgotten Dreams (2010).

Segundo a professora de cinema paulistana Lúcia Nagib, “Fata Morgana se destina, a princípio, à fruição sensível, como a que exige a execução de uma peça musical6 . Nem melhor, nem pior, mas o estilo de Herzog, sua linguagem, é completamente oposta ao conceito hollywoodiano (no melhor sentido) de filme.

Talvez o filme funcione melhor em tela grande, som profissional, na escuridão envolvente do cinema. Em tela pequena o filme fica um tanto entediante da metade pra frente, uma vez que nada acontece de fato, e todo mundo já entendeu a mensagem fílmica. Mais um Herzog só para fãs mesmo, ou para cinéfilos de mente bem aberta.

A própria estrutura do de Fata Morgana, em três atos, foi dividida na sala de montagem, com as imagens já todas captadas. É intuitivo, e, de certa forma, fora de controle. Para além do pessimismo herzogiano sobre a natureza e a humanidade, tudo mais neste filme é subjetivo.

Depende do quando o espectador está disposto a mergulhar na obra: pode ser um delírio relaxante e descompromissado ou, como diz a crítica de cinema italiana Grazia Paganelli, uma “viagem paradoxal dentro das infinitas gradações de silêncio”. 7


Algumas curiosidades:

– Herzog voltaria a República Centro-Africana em 1990 para filmar Echos Aus Einem Düsteren Reich, sobre a ditadura de Jean-Bédel Bokassa;

– Fata Morgana forma uma espécie de trilogia de ficção científica com Lektionen In Finsternis (1992) e The Wild Blue Yonder (2005);

– os óculos de aviador que algumas pessoas brancas (sempre deslocadas) usam no filme são os mesmos que os anões cegos (e indefesos) usaram em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen;

– Herzog usou a sequência inicial, filmada a partir de um dia inteiro de filmagem, acompanhando oito pousos de aviões do mesmo tipo (seriam os alienígenas pousando?), como um teste para a audiência, pois se ninguém saísse do cinema depois daquilo, todos ficariam até o fim da projeção.

– nos comentários da versão em inglês do DVD, Herzog explica que usou o termo italiano (Fada Morgana) porque a língua alemã (supostamente) não tem nenhuma expressão equivalente para esse tipo de miragem;

– entre os problemas enfrentados nas filmagens, Herzog foi preso, junto com toda a sua equipe, porque aparentemente o nome do cinegrafista Jörg Schmidt-Reitwein era semelhante ao de um mercenário alemão foragido na região, que havia sido condenado à morte à revelia;

– Herzog manteve o filme pronto consigo por quase dois anos, receoso de lançá-lo, por não enxergar público para ele, até que foi convencido pelos amigos Henri Langlois [estudioso francês de cinema (1914–1977)] e Lotte Eisner a inscrever o filme no Festival de Cannes, onde estreou;

– quando foi finalmente lançado, o filme tornou-se cult entre os fãs europeus de psicodelia, que frequentemente recorriam a drogas alucinógenas para “se conectar melhor” com o aspecto delirante do filme;

– Herzog se interessou pelos mitos maias por causa do amigo Florian Fricke (que faz uma ponta tocando piano em Lebenszeichen), que batizara sua banda de krautrock como Popol Vuh;

– o dialeto estranho que o homem usa no começo de Paraíso é o dogon, dialeto da tribo homônima do Mali, e nem o diretor faz ideia do que foi dito, pois só se interessou (pra variar) pelo estranhamento da cena.

Quem aí fala dogon?


¹ DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento, de 1983, citado em Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
² CARTER, Erica. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. John Wiley & Sons, 2012.
³ 7 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber. 2001.
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
6 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: O Cinema Como Realidade. Estação Liberdade, 1991.

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