quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

(2004) The White Diamond



Alemanha (rodado na Inglaterra e na Guiana) | 87min| 35 mm| cor
Roteiro: Annette Scheurich e Rudolph Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Henning Brümmer
Música: Ernst Reijseger
Elenco: Werner Herzog, Graham Dorrington, Dieter Plage


A história é bem herzogiana: “O engenheiro aeronáutico Graham Dorrington embarca numa viagem em direção às gigantescas cataratas do Kaiateur, no coração da Guiana, com a esperança de que seu dirigível cheio de hélio consiga sobrevoar o cimo das árvores. Mas sua aventura não está isenta de riscos: doze anos antes, uma expedição semelhante tinha tentando sobrevoar o extraordinário habitat da floresta tropical, culminando na tragédia da morte de Dieter Plage, amigo de Dorrington. Entre os protagonistas da expedição está Werner Herzog, que parte com o novo protótipo de dirigível para explorar o mundo perdido da floresta tropical virgem, um dos territórios menos exploradores do planeta”.1


Já dá pra enxergar alguns temas de apreço do diretor: natureza imponente e indomável, um desafiante/desafio absurdo e traumas revividos na tela. Dorrington é menos blasé na encenação de seu trauma do que os protagonista de Wings Of Hope, Echos Aus Einem Düsteren Reich, Schrei Aus Stein ou Little Dieter Needs To Fly, mas, ao mesmo tempo, é pintado como alguém meio bobo e atrapalhado (até no jeito como conta o acidente que mutilou uma de suas mãos na infância).


Seu desejo é sobrevoar a maior catarata da Guiana com um pequeno dirigível em forma de diamante (ou lágrima, ou coxinha, vai de você), mais fácil de manobrar que os clássicos zepelins, tarefa apoiada apoiada por mineradores rastafáris de diamantes locais - o mais proeminente é Mark Anthony Yhap, que incorpora o clichê do ‘nobre selvagem’ e que batiza o dirigível com o título do filme.


Dorrington e suas inquietações

Mais do que uma narrativa, The White Diamond é uma série de impressões motivadas pelo que Herzog sempre perseguiu. Dorrington, piloto do diamante branco, é o alter ego do diretor: toda a sua vida gira em torno de sua inquietude infinita para buscar mistérios, e toda aquela natureza imponente, quase intocada, se apresenta sempre como um mistério ao mesmo tempo fulgurante e impiedoso em sua indiferença diante dos homens.

Após uma brevíssima história do voo de balões/dirigíveis que culmina com o desastre do Hindengurg, Herzog nos apresenta Dorrington, que aparece até meio bobo, desastrado, pelo modo como são mostrados seus traumas, seus sonhos e sua fraquezas diante da tela (embora o diretor nunca tire proveito disso). Entre o conta-não-conta sobre a tragédia que vitimou o cinegrafista Dieter Plage (em 1992), o protagonista vai explicando seu trabalho, seus protótipos e algumas histórias, e o filme só ‘decola’ (ops) mesmo quando vamos a Guiana com o estafe, para os preparativos finais do voo.


Gostei do filme, apesar de tudo ser bem simplista mesmo – é mais um filme que não precisava ser longa-metragem –, já que as imagens, que pensei serem deslumbrantes, das cataratas, são bem poucas, e o que seria a grande sacada, o tal esconderijo das andorinhas, é deixado como mistério, a fim de não violar o potencial mítico que a cachoeira tem para os habitantes locais.


OK, como disse o crítico norte-americano de Cinema Roger Ebert (1942-2013), “é sublimemente típico de Herzog que ele não nos mostre o material médico da caverna, depois que Yhap argumenta que seu segredo sagrado deve ser preservado. O que há na caverna? Muito guano, é meu palpite”. 2

Mas tudo seria melhor se a película inteira não se encaminhasse para grandes imagens que simplesmente não vemos (vislumbramos bem pouco da cachoeira, embora em belíssimas tomadas).



Diamante branco enevoado

O próprio diretor dá suas razões: “Nesse caso não era tão interessante mostrar o que havia na gruta das andorinhas porque, por trás daquela catarata monumental, naquela caverna gigantesca, estava demasiado escuro. Dois dias depois falamos com o anterior chefe da tribo e ele percebeu que tínhamos filmado por trás da catarata. Pediu-nos que não mostrássemos nada porque, de alguma maneira, iríamos expor certos aspectos de sua cultura e as imagens que tínhamos iriam destruí-los”. (...) 3 “Temos que considerar a catarata em The White Diamond que esconde algo que está para além da nossa imaginação mas não é, obstante, palpável, e é o lar de um milhão e meio de andorinhas que vivem lá atrás. Damos por nós num lugar em que os homens e os sonhos estão de certa maneira reconciliados e estou falando da tragédia de Graham Dorrington. É um ‘lugar bom’ [eu-topos] e fomos lá numa altura boa, e o filme é sobre isso”. 4

Talvez o momento mais interessante e superestimado do filme , como bem nota o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager, “tenha a ver com o galo de estimação de Yhap, um pássaro banal em contraste com as misteriosas andorinhas, que são os verdadeiros temas do filme. Yhap, que mora e trabalha na Guiana, quer entrar na aeronave de Dorrington, mas quando pressionado explica mais do que enigmático, ele quer que ele leve seu galo voando com ele. (...) 5 Quanto mais amplamente o seu trabalho é conhecido, menos ele pode se debruçar sobre êxtases acidental no curso de fazer seus filmes. 6



O artifício de ‘não mostrar algo’ já havia sido usado de forma semelhante em Wo Die Grünen Ameisen Träumen e retornaria, de modo muito mais impactante ,e creio eu justificável, em Grizzly Man (2005). Mas, de todo modo, é um filme bacana, que pode te dar uma hora e meia de distração, com uma história diferente, boas imagens e uma trilha sonora muito bonita, a cargo de Ernst Reijseger, que também faria The Wild Blue Yonder (2005).


Falando em Grizzly Man, ele é o próximo capítulo da #MaratonaHerzog, e aí o bicho vai literal e figurativamente pegar, com essa obra-prima, talvez da última do diretor até hoje.


Curiosidades:


- Duas das sequências mais memoráveis – quando perguntam a Mark Anthony sobre o Universo em uma gota de água (que, aliás, nem era água, era glicerina, mais fácil de filmar), e a discussão entre diretor e protagonista sobre quem faria as sequências no dirigível, foram totalmente encenadas (esta, pelo menos, inspirada em uma discussão prévia, real);

- toda a música em A música em The White Diamond (e, consequentemente, em Wild Blue Yonder) foi feita antes do filme: “Quando rodávamos The White Diamond, pus o diretor de fotografia Henning Brümmer para ouvir a música que iria usar e lhe disse ‘Esse é o ritmo do filme. Quando a câmera fizer uma panorâmica, o movimento terá de ser sincronizado com a música’" 7


1 7 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
2
https://www.rogerebert.com/reviews/the-white-diamond-2005
3 4
HERZOG, Werner. In.:
Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
5 6 HERZOG, Werner. In.: he Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth, de Brad Prager. Wallflower Press, 2007.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

(2003) Wheel Of Time

Alemanha (rodado na Índia, na Áustria e no Tibete | 80min | Super 16 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Prem Rana Autari, Sur-Sudha Autari, Lhamo Dolma e Florian Fricke (Popol Vuh)
Elenco: Dalai Lama


Documentário sobre o maior ritual budista para promover a paz e a tolerância, realizado por Sua Santidade o Dalai Lama, em Bodh Gaya, Índia, e Graz, Áustria, em 2002, incluindo entrevistas exclusivas com o Dalai Lama e acesso a rituais secretos pela primeira vez em filme, bem como imagens de uma peregrinação ao Monte Kailash, no Tibete.

Assim o site oficial do diretor descreve este filme produzido para canais alemães e norte-americanos de tevê (ainda que tenha sido lançado nos cinemas nos EUA), e não sai muito disso: no lugar onde se crê que Buda recebeu a iluminação, milhares de budistas de reúnem - alguns chegam caminhando, outros, de joelhos -  para o ver a kalachakra (‘roda do tempo’, em sânscrito), que é basicamente uma grande mandala de areia que vai sendo cuidadosamente criada durante o evento, para então ser destruída (a areia sendo devolvida ao rio de onde foi tirada), simbolizando a impermanência.

Esse processo dura 12 dias, durante os quais os monges budistas tibetanos são ordenados, e a criação da mandala é mostrada duas vezes no filme, primeiro em Bodh Gaya, norte da Índia - onde Herzog filmou ele mesmo a maior parte, com uma câmera de 16 mm - em 2002, e no ano seguinte, em uma sala de exposições em Graz, Áustria. Em ambas as ocasiões, o Dalai Lama está presente, embora na Índia uma doença grave impedisse sua participação plena.

Montando a mandala de areia


Paralelamente, Wheel Of Time também descreve a peregrinação ao Monte Kailash, montanha tibetana de mais de 6.000 m, sagrada para budistas e hindus. Todos os anos, milhares de pessoas percorrem a rota rigorosa de mais de 50 km ao redor do pico, a uma altitude de mais de 5.000 m, levando dias para completar o trajeto (e alguns chegam a morrer no caminho), em busca da boa sorte que o sacrifício traria.

Herzog inclui uma entrevista pessoal (e não muito interessante) com o Dalai Lama, bem como tibetano ex-preso político Takna Jigme Zangpo, que passou 37 anos em uma prisão chinesa por seu apoio do Movimento para a Independência do Tibete (essa parte seria mais interessante em outro contexto, fica parecendo deslocada do tema ‘espiritualizado’).

A crítica, em geral, foi bem favorável ao filme: o escritor e crítico norte-americano de cinema Stephen Holden, por exemplo, afirma que "Wheel of Time é menos sobre palavras do que sobre mergulhar em um mundo intensamente devocional, sentindo sua força e sentindo sua extrema austeridade. O filme poderia também ter sido chamado de ‘uma imersão no budismo tibetano’. Com uma explicação mínima, coloca você no centro”. 1

O especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames exagera (e muito): “Wheel of Time nos leva de volta às paisagens visionárias de Fata Morgana.” 2

Na minha opinião, o filme tem os mesmos problemas de Jag Mandir e Pilgrimage, por exemplo, um excesso de êxtase que torna tudo monótono; são três filmes que poderiam ser média-metragens, de no máximo 40min cada. Também neste Wheel Of Time, se você não for grande conhecedor/entusiasta dos cultos tibetanos, vai ficar entre a dispersão e a impaciência. Como contraponto, Gott Und Die Beladenen e Glocken Aus Der Tiefe funcionam muito melhor sob o mesmo tema de expressões idiossincráticas de fé.

Há vários bons momentos, devo ressaltar, como o peregrino que tem a cabeça esfolada de tanto tocá-la no chão durante o trajeto, com sucessivos ajoelhamentos para reverência; ou o fiel que compra pássaros numa espécie de feirinha, só para libertá-los. Mas são boas sequências pinçadas de um todo bastante repetitivo – e sim, eu sei que é intencional, tem a ver com a ‘estética-extática’ do diretor, e até com o tema de paciência, reflexão e do caráter ao mesmo tempo concêntrico e fugidio da existência sob a óptica budista.

Devoção & sacrifício


O interesse do alemão pelo tema é evidente: “‘Foi uma profunda curiosidade em mostrar uma paisagem verdadeiramente sagrada. Essa foi uma das razões pelas quais eu queria fotografar o Monte Kailash sozinho. Eu era meu próprio diretor de fotografia para essas sequências’”. 3

Não por acaso, é o retorno a um tema recorrente em sua obra: “Em Wheel Of Time há muito pathos [sentimento, sofrimento] humano, muita espiritualidade humana, numa forma entendida pelos gregos antigos”. 4

O estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager detalha o lugar da obra universo herzogiano: “No filme, Herzog chama a mandala de representação de uma paisagem interior, ligando imediatamente a atividade dos monges ao seu próprio projeto cinematográfico”. 5 (...)

A estudiosa norte-americana de de cultura alemã Stefanie Harris vai além: "A razão pela qual Herzog foi atraído para este tópico - além da imagem recorrente de peregrinações - é provável que a mandala de areia possa ser descrita como uma 'paisagem interior', um conceito que geralmente intriga Herzog. Desde seus primeiros momentos como cineasta, voltando a Lebenszeichen, Herzog demonstrou que acredita que há uma relação entre a mandala de areia, que é a representação interna de uma paisagem, e a própria busca de Herzog por paisagens internas e visões internas". 6

Apesar disso tudo, não recomendo este filme para quem não tenha interesse específico no tema. Ao contrário de Stephen Holden, não me senti imerso na cultura retratada na obra.


Curiosidades:

- “Parece que o Dalai Lama queria que fosse eu a fazer o filme, ele vê muitos filmes”, declarou Herzog à estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli; 7

- A parte do Tibete, filmada pelo próprio Herzog, foi a primeira vez em que ele se inclui na ficha técnica por esse serviço: “Muitas vezes sou eu que faço a câmera em certas partes dos meus filmes (...) eu pedia a um operador de câmera que pusesse seu nome na ficha técnica”; 8

Em 2002, entre Invincible e Wheel Of Time, o diretor participou do longa-metragem coletivo Ten Minutes Older: The Trumpet, projeto do produtor Nicolas McClintock, que reúne nomes de peso [além de Herzog, claro, que participa com o episódio Ten Thousand Years Old, de 10min] como Bernardo Bertolucci, István Szabó, Jean-Luc Godard, Spike Lee e Wim Wenders, em curtas sob o tema do significado da vida na virada do milênio.


1 https://www.nytimes.com/2005/06/15/movies/with-herzog-inside-a-world-of-devotion.html
2 3
AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
4 7 8 HERZOG, Werner. In.:
Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
5
HARRIS, Stefanie. Moving Stills: Herzog And Photography. In.: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
6
PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.