quarta-feira, 13 de junho de 2018

(2001) Invincible

Alemanha (rodado na Alemanha, na Lituânia, na Holanda, na Holanda e em Christmas Island (Austrália) | 130min | 35 mm| cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Walter Saxer
Som: Ian Fuller
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Hans Zimmer e Klaus Badelt (e excertos de excertos de Händel e Beethoven)
Elenco: Tim Roth (Hanussen), Jouko Ahola (Zishe Breitbart), Anna Gourari (Marta Farra), Jacob Vein (Benjamin Breitbart), Max Raabe (mestre de cerimônias), Gustav Oeter Woehler (Alfred Landwehr), Udo Kier (Conde Helldorf), Herb Golder (Rabino Edelmann), Gary Bart (Ytzak Breitbart), Renata Krogner (Senhora Breitbart)

“Invincible é provavelmente o único filme sobre a Alemanha e os nazistas que não termina inevitavelmente com o Holocausto.” 1

Há artistas, muitas vezes geniais, que não sabem lidar direito com narrativas tradicionais. Clarice Lispector (1920–1977) é um exemplo: suas narrativas com começo, meio e fim, como A Maçã No Escuro e O Lustre, são pálidas perto do melhor de sua obra, feito Àgua Viva e A Paixão Segundo GH.

O mesmo ocorre com Werner Herzog: o melhor de sua obra ficcional está em instantâneos como Aguirre, Der Zorn Gottes, ou na narrativa episódica de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle; é fácil ver que filmes mais convencionais como Wo Die Grünen Ameisen Träumen ou mesmo Fitzcarraldo (para além do absurdo da própria existência do filme) sofrem com a mão pesada e aparente preguiça do diretor para desenvolver personagens e diálogos.

Então, sabe-se lá por quê, o alemão vem com este Invincible, provavelmente sua obra mais convencional, quase careta, a despeito da história (baseada em fatos reais) interessante: Zishe Breitbart, um ferreiro judeu polonês, enorme, forte e loiro (e, digamos assim, um tanto limitado intelectualmente), é usado pelo inescrupuloso e megalomaníaco Hanussen, célebre ilusionista/hipnotizador judeu austríaco simpatizante do nazismo, para um freakshow teatral em Berlim, sob o pseudônimo wagneriano Siegfried e com uma indumentária ridícula de bárbaro, diante de um público declaradamente antissemita – até que Zishe se rebela, diante dos nazistas, se afirma judeu (nomeando a si mesmo como Sansão) e acaba se tornando um símbolo para seus patrícios já tão oprimidos na Alemanha de 1932. 

Ótima história, certo? O problema, tal como em Wo Die Grünen Ameisen Träumen, é o jeito frouxo como a história se desenvolve, com diálogos risíveis e situações inverossímeis, ao mesmo tempo em que a mão herzogiana pesa o tempo todo, não deixando o filme fluir – pior, caminha lenta e previsivelmente para um final lamentável. Além disso, as motivações dos personagens, especialmente de Hanussen (em tese, um bom personagem, um judeu que odeia sua origem e lucra com o sofrimento de seus iguais), são falhas: por que escolher um judeu para seu show? E a própria atuação de Tim Roth é bastante exagerada, o que acaba por nos fazer cansar do personagem mais interessante do filme.

A performance do protagonista também não ajuda, como atesta esta crítica anônima publicada no Estadão, à época do lançamento do filme: “O problema é a falta de funcionalidade do personagem criado para o gigante Zishe (Jouko Ahola). Unidimensional, não lembra em nada os seres contraditórios, multifacetados da galeria de Herzog, como Aguirre ou Fitzcarraldo, de obras anteriores. Enfim, não é sempre que se trabalha com um ator como Klaus Kinski, mas a verdade é que a complexidade de um personagem é também responsabilidade do diretor”. 2

Zishe em ação

A maior parte da crítica malhou o filme, pelos mesmos motivos que eu, mas há críticos – especialmente os sabidamente fãs do alemão (e frequentemente usados como fonte por mim) que foram da condescendência ao verdadeiro entusiasmo com a obra.

A performance de Jouko Ahola foi elogiada pela estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, que afirma que “Olhamos profundamente para um homem que não tem educação e que nunca experimentou o mundo exterior. Mas, claro, está embebido de cultura judaica e vem de um contexto muito bem definido e sólido. (...) Quando olho para ele tenho sempre a sensação de que a audiência o adora porque há algo de muito sólido e arcaico nele. Veem-no como um homem decente, um bom homem, sólido e gentil. (...) Há algo de inacabado, de não formado, nele.” 3Já o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) exagera bem: “Quanto a Jouko Ahola, esse ator inexperiente, que parece por natureza ser bondoso e descomplicado, pode nunca mais atuar, mas encontrou o papel perfeito, como Maria Falconetti fez n’A Paixão De Joana d'Arc". 4

A (razoável) complexidade de Hanussen e sua relações com Zishe também são elogiadas, desta vez pelo estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager: “Hanussen engaja-se em uma abnegação oportunista que Herzog retrata como apenas um pequeno passo de uma negação das necessidades daqueles à sua volta; a decisão de Hanussen de deixar isso de lado é parte constitutiva de sua decisão de negar os direitos dos outros.” 5 (...) “Além disso, ao apresentar Hanussen e Breitbart não como rivais, mas como colegas, as duas figuras funcionam como contraponto uma da outra, tipificando duas respostas possíveis ao antissemitismo dos 1930s”. 6

O estudioso norte-americano de cinema Paul Cronin complementa: “Enquanto Zishe influencia as pessoas pela força de seu corpo, Hanussen manipula as audiências por meio do poder da imaginação, e a colisão dessas duas faz um forte choque dramático”. 7

O final do filme, anticlimático, também foi elogiado por Brad Prager: “O filme é excepcional em sua disposição de oferecer um final que não seja de modo nenhum redentor. Embora Breitbart tenha visto a verdade, ele passou a entender, mais do que qualquer outra coisa, a disposição básica por parte dos alemães de se envolver em violência contra os judeus. 8 (...) Embora o filme não conduza ao Holocausto, (...) oferece uma perspectiva sobre a desumanização dos judeus no período anterior à guerra e é diferente dos filmes que só revelariam uma feliz harmonia entre alemães pré-guerra e judeus”. 9

Hanussen em ação

Grazia Paganelli aparentemente procura ler o epílogo à luz das lendas e profecias judaicas: “Depois da viagem, da descoberta e da perda, o jovem judeu Zishe regressa à casa mais forte e mais seguro, com uma verdade urgente para comunicar a todos (Hitler vai subir ao poder, com efeitos que já prevê devastadores para o seu povo). Completa, assim, uma reunião consigo próprio com aquela parte esquecida e trazida de novo à vida como um sonho, ponto de chegada pré-anunciado desde os primeiros momentos”. 10

E quanto à impactante cena com os caranguejos de Christmas Island, Roger Ebert interpreta assim: “Eu acho que essa cena pode representar as hordas nazistas emergentes, mas é claro que não pode haver tradução literal. Talvez Herzog queira ilustrar a luta darwinista implacável da qual o homem pode se levantar com bom coração e propósito”. 11

Enfim, claro que há coisas boas no filme, como a fotografia e a trilha sonora; além disso, Zishe, em sua ingenuidade e inadequação ao mundo e às suas normas, tem um pouco de Bruno S (de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle e Stroszek), e é ótimo contraponto entre Hanussen ter supostamente previsto a ascensão de Hitler e Zishe ter seu destino teoricamente previsto por um rabino – na prática, a dizimação de seu povo. E, vá lá, se você pensar no personagem de Tim Roth como um arquétipo mefistotélico, até que ele funciona bem.

Porém, foi pouco para despertar meu interesse pelo filme, de modo que foi bem difícil transpor suas mais de duas horas de duração. O gentle giant de Invincible não tem a profundidade intrínseca, com medos e contradições, dos grandes personagens de Herzog. É tudo, como sempre, muito honesto e sincero – e as críticas acima mostram que tudo no filme foi bem pensado, que tentou-se amarrar as coisas, mas nem sempre isso é o bastante, às vezes o resultado final não corresponde aos planos iniciais.

Enfim: Herzog, tente não fazer mais filmes convencionais, OK?, e até a próxima.


Curiosidades:

– algumas liberdades históricas foram tomadas em prol da história, como a junção das histórias de Zishe (que na verdade performou na década anterior, nos 1920s) e de Hanussen (este sim, na época correta); como disse o próprio diretor, “
Breitbart foi basicamente uma personalidade do showbizz, não muito mais que isso”; 12

Sobre Hanussen, que teria previsto a ascensão de Hitler, Herzog explica que “na realidade, ele fez algo que todos os videntes fazem - apostou em todos os cavalos, prevendo as vitórias de Schleicher, Brüning e von Papen também, e, depois da eleição, ele apontou apenas para o parágrafo que escrevera sobre a vitória de Hitler”.

–  o finlandês Jouko Ahola, que faz o papel de Zeishe, tem dois títulos de “Homem Mais Forte do Mundo” e mais dois de “Homem Mais Forte da Europa”, todos dos 1990s;

– a sequência com os caranguejos-vermelhos fazendo sua conhecida e impressionante migração anual em Christmas Island (próxima a Indonésia, mas pertencente a Austrália) já havia sido utilizada em Echos Aus Einem Düsteren Reich;

– a figura de Zishe, o gigante servil, de bom coração e com dificuldade de se expressar, é uma clara alusão ao mito judeu do golem (que, em alguma narrativas, também defende os judeus oprimidos nos guetos);

– o gentle giant também faz alusão à lenda talmúdica dos lamed-vav, os 36 homens verdadeiramente justos sobre a Terra a cada geração (Zishe seria um desses), quando é instruído pelo rabino;

– o orçamento do filme foi de US$ 6 milhões e o roteiro foi escrito em nove dias;

– há outros dois filmes sobre Hanussen, epônimos, sendo o primeiro dos austríacos OW Fischer (1915–2004) e Georg Marischka (1922–1999), de 1955, e o mais famoso, de 1988, feito pelo húngaro István Szabó (1938–), famoso por Mephisto (1981), de temática algo similar a Invincible;

– a cena de Hansusen em uma mesa circular, rodeado de pessoas, é recriação de uma sequência de Dr. Mabuse (1922), de Fritz Lang (1890–1976);

– o visual e o gestual do personagem de Tim Roth foi inspirado no protagonista do livro Mario And The Magician (1929), do alemão Thomas Mann (1875–1955), em que o ilusionista claramente simboliza o poder de manipulação do nazifascismo;

Invincible é citado em um diálogo do curta The Debridement In Rome (2012), de Feliz Else;

– a russa Anna Gourari, que interpreta Marta Faria, é uma renomada pianista, e tocou realmente em todas as suas cenas ao piano;

– Hans Zimmer, que criou parte da trilha sonora, resolveu que ia ser um compositor de músicas para filmes após assistir a Fitzcarraldo;

– dois minutos após a cena da hipnose, o diretor de fotografia começou a balançar e sua cabeça pendeu para trás, no Herzog agarrou-o e colocou-o suavemente de volta trás da câmera, onde continuou – e Tim Roth também foi realmente capaz de hipnotizar a jovem mulher, e é como a vemos no filme, despertando do transe;

– a voz na plateia, ouvida logo antes de Zishe levantar 900 libras, pertence a Werner Herzog;

– quando perguntado, em uma entrevista, sobre a escolha de atores não-profissionais [mesmo como protagonistas], Herzog respondeu que teria que interromper o entrevistador, porque “não existem atores não profissionais; existem os bons e os maus”; 13

– uma idosa que morava em uma das casas perto de onde foram filmadas as cenas do mercado, uma vez saiu com uma sacola de compras e, embora o diretor Werner Herzog tenha dito que era apenas um set de filmagem (não havia mercado ali fazia 70 anos), insistiu em “fazer compras” e interrompeu as gravações durante 15 minutos, no que Herzog pensou que “estava fazendo um bom trabalho [com o filme]”; 14

– Herzog queria um rabino de verdade no papel de Edelmann, mas, como não havia nenhum disponível que servisse ao cronograma do filme, acabou ‘sobrando’ para o assistente de direção, Herb Golder, que precisou ficar algumas semanas sem se barbear;

– a equipe levou semanas para negociar com a comunidade judaica da pequena cidade de Vilnus, na Lituânia, a fim de filmar na sinagoga local (“a única em mais de cem que sobreviveu à investida nazista15); segundo Herzog. Os moradores locais foram inicialmente resistentes à ideia (“Um cineasta alemão poderia realmente retratar a vida e os rituais judaicos de maneira digna?16), mas acabaram autorizados a filmar lá, “e muitos dos extras em Invincible são genuínos congregantes da sinagoga17).


1
HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.

2
https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,herzog-apresenta-seu-gigante-zishe,20021021p1596
3 10 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 11 EBERT, Roger. In.: https://www.rogerebert.com/reviews/invincible-2002
5 6 8 9
PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.

7 15 16 17 CRONIN, Paul.
Werner Herzog: A Guide For The Perplexed. Faber & Faber, 2014.
12
14 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.

13
HERZOG, Werner. In.: http://www.indiewire.com/2002/09/interview-strong-man-on-a-mission-werner-herzog-talks-about-invincible-80201

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

(2001) Pilgrimage


Alemanha (rodado na Rússia e no México) | 18min| super 16 mm| cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Luz-Maria Rojas
Som: Francisco Adrianzen
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Jorge Paccheco
Música: John Tavener
Elenco: peregrinos russos e mexicanos anônimos

O site oficial do diretor define Pilgrimage como: “Um filme sobre a peregrinação a Virgem de Guadalupe, ao túmulo de São Serguei em Zagorsk/Rússia e outros lugares ao redor do mundo, mas principalmente um filme (e música) sobre a espiritualidade profunda, o fervor religioso e o profundo sofrimento humano dos peregrinos”.

Feito sob encomenda para a BBC, como parte de uma série sobre fé e peregrinação, Pilgrimage exibe quase 20 minutos, sob intensa música clássica (repetitiva, quase mântrica), de peregrinos exibindo feições ao mesmo tempo de aceitação e superação do sofrimento físico, dos limites da carne – em sequências, sem ligação umas com as outras (sequer sabemos algo sobre os fiéis), de intensa dramaticidade.
fé & escuridão

Herzog explica mais sobre o projeto: “Originalmente, eu tinha alguns sons realistas na trilha sonora, que eu tinha gravado na basílica, mas no momento em que ouvi a música do [compositor inglês] John [Tavener (1944–2013)], soube que tinha que jogar tudo fora, porque o filme e a peregrinação teriam vindo abaixo, trazidos por alguns eventos pseudorrealistas, quase ordinários”. 1

Uma coisa interessante é que os objetos de culto jamais são mostrados; toda a contemplação extática do filme é direcionada aos rostos e corpos das pessoas, nunca às imagens religiosas – isso é, sem dúvida, uma grande ideia, de bastante impacto.

Pilgrimage tem inegável coerência na obra do diretor, seja pelo fato de que ele mesmo já peregrinou em grande estilo (epopeia contada no livro Of Walking In Ice, sobre o qual falo um pouco aqui), seja pela verdade extática que o conjunto do filme traz, ou mesmo porque a fé em grande escala já foi retratada em diversos filmes seus, como God’s Angry Man, Huie’s Sermon, Glocken Aus Der Tiefe e Gott Und Die Beladenen.

O próprio Herzog liga este filme a outras obras suas, como Wodaabe, Die Hirten Der Sonne, por exemplo: "Apenas aconteceu de ver os dromedários sendo conduzidos através da ponte, no meio de todos aqueles carros. Para mim é uma cena de real e profunda beleza, similar à última cena de Pilgrimage, com as mulheres cruzando o rio congelado”. 2

Porém, na prática, a obra não funciona muito bem – são vinte minutos da mesma ideia, da mesma alegoria, que, uma vez entendida, não deixa mais nada a ser apreciado como novidade. Com um terço de projeção já tive a sensação de ver um grande videoclipe, como ocorreu, de certa forma, ao assistir a Jag Mandir; tive a impressão de que o filme tenta ser tão puramente transcendente que acaba por lhe faltar metafísica.
fé & luz

Apesar disso, Herzog justifica até mesmo o fato de o filme não ter história/narrativa ou diálogos, num tom, verdade seja dita, muito mais de quem está certo do que fez e faz do que quem tenta justificar: as escolhas de insucesso “Não vejo Pilgrimage como um filme mudo porque a música está inextricavelmente ligada às imagens”.

A crítica em geral, como a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, também elogia bastante o curta-metragem: “Entre extensões de gelo e rochedos batidos pelas ondas, o filme surge como uma homenagem feita pelo homem ao canto submisso e contínuo do mundo no seu esplendor extático, sinfonia de imagens que se sucedem, procurando o centro espiritual do homem, o equilíbrio incerto que está na história, nas pedras, na água milenar, no ressoar rítmico do vento”. 4

Apesar de o filme não ter me agradado, eu evidentemente reconheço méritos artísticos nele, entendo quem se encante, gosto de várias soluções audiovisuais/sensoriais que ele apresenta , e acho que vale a pena, para quem se interessa pelo tema ou pelo diretor, dar uma conferida.

Como diz o estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager, “Herzog deixa claro que as pessoas fazendo peregrinações em Pilgrimage estão enfrentando sua dor em nome do fervor, do sofrimento, e, é claro, em nome do êxtase" 5. Então, quem sabe, a reverência a essa (mesmo que tentativa de) transcendência não te chama a atenção também?



Curiosidades:

– a epígrafe do filme, atribuída ao escritor alemão Thomas à Kempis (1380–1471), na verdade foi inventada por Herzog;

– entre as sequências de peregrinos russos, há cenas reutilizadas de Glocken Aus Der Tiefe (as pessoas rastejando no gelo);

– tem o filme completo no YouTube.


1 2 3 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001
4 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

(1999) Gott Und Die Beladenen

Alemanha (rodado na Antígua, na Guatemala e no México) | 43min | vídeo | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Martin Choroba e Joachim Puls
Som: Francisco Adrianzen
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Jorge Vignati
Música: excertos de Charles Gounod, Orlando di Lasso e Giovanni Pierluigi da Palestrina
Elenco: Donald Arthur, Muriel Maselli


Parte de uma série alemã de tevê chamada 2000 Years Of Christianity, Herzog dirige um episódio, média-metragem, que no site do alemão está descrito como “um filme sobre a conquista da América Latina pela Igreja Católica e as consequências para a vida religiosa de hoje naquela região”.

E, como explica o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames, “Ao contrário dos outros documentários de Herzog, este faz um argumento explícito. Com a conquista espanhola dos povos mesoamericanos, Herzog narra que, ‘a fé católica foi forçada a... uma nação inteira’". 1
Filme do Herzog sem Herzog é esquisito, né. Mas vamos com a narração de Donald Arthur (1937–2016) mesmo, que parece vinda dos documentários ‘mondo’ dos 1970s, e peca pelo excesso de didatismo. A vinheta da série é tosca, assim como as encenações são cafonas, ao estilo The History Channel. E a abordagem é semisensacionalista, à ‘Tabu’, do National Geographic, com teorias demasiadamente simplistas para tão vasto tema.

Basicamente, enquanto pergunta a todo momento “quem é Jesus Cristo para essas pessoas” (especialmente quando mostra Cristo morto, Cristo crucificado e afins), o filme mostra cultos bastante sincréticos dos países escolhidos – o que pode chocar o público-alvo, europeu, mas definitivamente faz parte do cotidiano latino.

Quem?

Então dá-lhe cenas guatemaltecas de cultos com velas, cachaças, ex-votos e charutos toscos enormes (atém crianças fumam) direcionados especialmente ao Maximón, o conhecido São Simão. Aqui ele é “parte de Deus maia, parte santo católico, uma figura de origem mista indígena e européia, a resultante fusão de elementos de duas tradições sincréticas. Mais do que apenas um vestígio do passado colonial distante, a figura de Maximón-San Simón tem uma função viva na Guatemala contemporânea. Seus rituais e suas representações são fluidos e mudam constantemente”. 2

É bem estranho que este filme tenha sido patrocinado, em parte, pela Igreja Católica, visto que, na maior parte do tempo, o ‘descobrimento’ é narrado de forma bastante crua, com o notável uso gráfico da Historia General De Las Cosas De La Nueva España, também conhecida como Códex Florentino, que confere aos relato uma crueza e farta ilustração do horror que foi a invasão dos ibéricos ao Novo Mundo.

Códex

Eric Ames aponta: “O cristianismo era um ‘fardo’ para ser (literalmente e figurativamente) suportado por pessoas colonizadas, e continua sendo assim até hoje - uma idéia tornada vívida pela cena de abertura do episódio” [em sequência à imagem do Cristo carregando a cruz, surgem várias cenas de gente pobre carregando fardos imensos pelas ruas da cidade]. 3 (...) “Como o filme sugere, no entanto, a Conquista resultou não apenas na perda e opressão traumática, mas também em atos criativos de apropriação e transformação, que em alguns casos, paradoxalmente, permitiram a sobrevivência dos mesmos mitos indígenas e rituais que a igreja procurou substituir”. 4

Para que as coisas não fiquem tão estranhamente negativas para a Igreja, há um contraponto, como lembra o estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager: “Na versão para a televisão, a história de violência é balanceada pela redentora história do Frei Bartolomé de las Casas, padre do século 16 que advogou pelos direitos dos índios e é apresentado a nós como a única voz que se levantou contra a violência cometida contra os astecas, também denunciando as conversões forçadas”. 5

Maximón

Mas  o que fica estranho mesmo é o final, em que o narrador conclui que “A mensagem de Cristo, a mensagem do amor: foi recebida pelos cristãos em cada século, em todas as partes do mundo, sempre de novas formas. Novas abordagens para a religiosidade se desenvolveram a partir dessa única fonte, incluindo as formas mais estranhas de devoção cristã. A história permitiu que eles crescessem como flores coloridas, e sempre combina tradições antigas com novas, formas completamente pessoais de fé cristã, que muitas vezes se envolveram em conflitos uns com os outros. Ninguém, no entanto, pode reivindicar o direito de julgar essas formas sérias de fé pessoal. Pois o amor e a tolerância formam o núcleo da mensagem cristã”.

Parece uma grande provocação de Herzog, e que aparentemente ninguém da produção notou, pois, como em aponta Eric Ames, “Nada nos quarenta e cinco minutos [de filme] leva a essa conclusão. Pelo contrário, contradiz diretamente o argumento do filme sobre a coerção, o fascínio pelas formas de resistência e a proliferação de questões”. 6

Enfim, é um filme confuso, simplista, mal resolvido e que não tem praticamente nada de hergoziano; não recomendo (a única coisa de que gostei foi o sempre eficiente uso da música clássica por parte do diretor alemão) – veja outro filme da #MaratonaHerzog, qualquer um mais bem avaliado.


Curiosidades:

– há (pelo menos) três versões do filme: Neue Welten: Gott Und Die Beladenen, exibido na televisão alemã em 2000, como parte da minissérie (mas lançada em DVD somente 2007), sendo a única versão narrada por Herzog; a segunda versão, a que vi, com o título God And The Burdened, produzida para o mercado externo, e lançada diretamente em DVD, em 2007, com a narração de Donald Arthur; e, finalmente, a terceira versão, mais curta e sem narração (apenas intertítulos e legendas), sob o título Christ And Demons In New Spain;

– para confundir ainda mais, segundo Eric Ames, Werner Herzog e Paul Cronin se referem ao original alemão por seu subtítulo, traduzido como The Lord And The Laden, mas o título aliterativo não se encontra em nenhum lugar do filme ou do seu material de propaganda;

– Donald Arthur também narrou em off a versão em língua inglesa de Schrei Aus Stein;

– a série 2000 Jahre Christentum é uma curiosa coprodução entre a tevê pública alemã (ARD) e a Tellux-Film, braço midiático da igreja católica no país;

– sobre o convite para fazer o episódio, “Eu disse a eles que queria fazer algo sobre a Igreja na América Latina, mas que eles não deveriam esperar nada enciclopédico porque sabia que queria ir a um lugar muito específico (o santuário ao deus maia Maximón em San Andrés Itzapa na Guatemala)". 7


1 2 3 4 6 7 AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

(1999) Mein Liebster Feind

Alemanha (rodado no Peru, na Holanda, na Alemanha, na França e nos EUA) | 95min | super 16 mm |cor/p&b
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Florian Fricke (Popol Vuh)
Elenco: Werner Herzog, Klaus Kinski, Eva Mattes, Claudia Cardinale, Beat Presser, Guillermo Rios, Andres Vicente, Justo Gonzales, Benino Moreno Placido, Barão e Baronesa von d. Recke, José Koechlin von Stein, Bil Pence


Não é um filme sobre Kinski nem um filme sobre mim, é um filme sobre uma relação, sobre uma relação artística muito pronunciada, quase perigosa. Foi, em muitos sentidos, um paradigma do processo criativo, tão intensa que – enquanto trabalhávamos – já tinha pensado em transpô-lo para filme. Mas me ajoelho e agradeço a Deus por não tê-lo feito àquela altura; foi bom ter esperado dez anos para fazê-lo.” 1


O ano é 1971. Klaus Kinski (1926–1991), excursionando com o espetáculo Jesus Christus Erlöser (Jesus Cristo Salvador), no qual interpretava o próprio, discute furiosamente com o público. Em seguida, Herzog nos apresenta o prédio em que morou com o ator quando jovem, e nos conta histórias sobre seus acessos de fúria constantes e incontroláveis. Daí vamos para as já conhecidas histórias insanas ocorridas nos sets de Aguirre, Der Zorn Gottes e Fitzcarraldo, que vão de ator quase matando membro da equipe a diretor ameaçando ator de morte, passando por índios figurantes se oferecendo para matar o ator.

Como explica o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager, “De certa forma, Mein Liebster Feind não se resume apenas a recontar o passado, ou a contar a história de forma que Herzog venha a aceitar a perda, mas também é sobre como esse objetivo é alcançado de forma cinematográfica. Porque tanto de seu relacionamento ocorreu em filme, que chegar a um acordo com o seu fim pode ser feito melhor em filme também.” 2

Porém, num exercício não só de memória e homenagem, mas também de exorcismo, Herzog sempre intercala essas histórias com cena e depoimentos, digamos, favoráveis a Kinski, mostrando que ele sabia ser gentil e afetuoso quando queria: há depoimentos de Eva Mattes e Claudia Cardinale falando muito bem dele, assim como, após uma cena em que, num festival de cinema, ator e diretor trocam um abraço carinhoso, de verdadeiros amigos, fazendo com que este desabafe, dizendo que sentia falta daquele.


Às vezes era difícil

Aliás, quando perguntado pelo estudioso norte-americano de cinema Paul Cronin se sente falta de Kinski, Herzog afirma: “Como eu, Kinski era uma pessoa muito física, mas de maneira diferente. Nós nos complementamos bem porque ele juntou todos. Ele atraiu o rebanho magneticamente e eu o segurei. Kinski foi feito para mim, para o meu cinema. Às vezes quero colocar meu braço ao redor dele novamente, mas acho que eu só sonho com isso porque eu tenho essa imagem antiga de nós dois. Não me arrependo de nenhum momento, nenhum. Talvez eu sinta falta dele. Sim, de vez em quando eu sinto falta dele”. 3

O caráter de ‘exorcismo’ do filme fica claro neste depoimento: “Sinto-me satisfeito por ter decidido fazer o filme muitos anos depois da morte de Kinski, quando o turbilhão amainara e minha mágoa desaparecera. Agora olho para as situações absurdas com humor (…). O humor com que olho para nós dois é algo de novo, algo que apenas se tornou possível devido ao mistério do tempo. A passagem do tempo muda muito as coisas.4Isso fica claro pelo modo como o diretor escolhe encerrar o filme: Klaus Kinski, em um campo ensolarado, encantado, brincando com uma borboleta, que insiste em pousar em seu corpo, como que hipnotizada. É uma cena belíssima e tocante, que deixa claro o quão importante o ator maluco era para o diretor igualmente maluco.

Às vezes era tranquilo


Na opinião da crítica norte-americana de cinema Janet Maslin, “Herzog usa o documentário não só para invocar histórias de Kinski, mas também para contemplar o autêntico (e errático) gênio do ator". 5

Kinski teria sido uma ator medíocre e de carreira errática sem o espírito e a paciência de Herzog, e este não teria feito seus maiores clássicos sem a impetuosidade que ardia no espírito do astro. Foi uma parceria ao mesmo tempo improvável e inevitável.

Segundo o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942-2013), "’Mein Liebster Feind’ é sobre dois homens que queriam ser dominantes, que tinham todas as respostas, que estavam inseparavelmente unidas em amor e ódio, e que criaram um trabalho extraordinário - enquanto o tempo todo um se ressentia com a contribuição do outro.” 6

Sobre a sequência de Cobra Verde, em que Klaus Kinski, exausto física e mentalmente sucumbe à beira de uma praia, o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames teoriza: “Herzog alega a voz que Kinski realmente morreu como resultado de sua intensidade e exaustão ‘apenas desta cena’, mesmo embora sua morte tenha ocorrido muito mais tarde, em outro lugar, e fora da câmera. Ao fazer essa afirmação, como um estudioso observou, Herzog se atribui retroativamente um grau de responsabilidade pela morte real de Kinski. Por que ele deveria fazer isso?7

A resposta óbvia é que Herzog se sentiu responsável por ‘usar’ a loucura e a intensidade de Kinski até a exaustão, e esse tipo de questionamento, mesmo que não ‘indo pra frente’, mas parte de todo o processo pelo qual o diretor passou ao lidar, fazendo Mein Liebster Feind, de passar a limpo todas as dificuldades e vicissitudes da incrível, mágica e trágica, relação entre ele e seu ator preferido.


Mas o que fica é o que importa
O crítico de cinema Inácio de Araújo tem boas conclusões sobre a obra: “Não é apenas a revelação dessas histórias que faz o encanto do filme, e sim o encontro de duas formas peculiares de loucura.8 (…) “Todo mundo tem um amigo especial. Poucos têm um inimigo do peito como Klaus Kinski. Isto é, a afinidade entre ambos parecia vir não das semelhanças, mas daquilo que os diferenciava.9

Mesmo que você não tenha visto todas as parcerias Herzog + Kinski, mesmo que você não tenha assistido a nenhuma delas, veja este filme, obrigatório não só para a obra do alemão, ou mesmo para o cinema, mas sim como tratado sobre as relações humanas.  Uma história duradoura de amor & ódio. Denso e tenso, terno e eterno. Veja logo.

Curiosidades:


– O espetáculo Jesus Christus Erlöser, de 1971, virou documentário em 2008 e está na íntegra no YouTube (legendas em inglês);

– Klaus Kinski abandonou esse espetáculo para estrelar sua primeira parceria com Werner Herzog, Aguirre, Der Zorn Gottes;

– os demais filmes que fizeram juntos são Nosferatu, Woyzeck, Fitzcarraldo e Cobra Verde;

– Herzog afirma que escreveu o roteiro “em 15 minutos, após 72 horas sem dormir, vendo  um documentário de TV contemplativo e um filme pornô, e concluindo que o segundo aproximou-se mais da verdade”. 10


1 4 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
2 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
3 CRONIN, Paul. Herzog On Herzog. Faber & Faber, 2001.
5 MASLIN, Janet. In: http://www.nytimes.com/movie/review?res=9B0CE1D9123BF930A35752C1A96F958260 
6 EBERT, Roger. In: http://www.rogerebert.com/reviews/my-best-fiend-2000 
7 AMES, Eric. Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
8 ARAÚJO, Inácio de. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2710199903.htm 
9 ARAÚJO, Inácio de. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0902200127.htm 
10 HERZOG, Werner. In: https://www.theguardian.com/friday_review/story/0,,296777,00.html