sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

(2007) Encounters At The End Of The World

EUA (rodado na Antárdida) | 99min | HDcam | cor
Roteiro, direção e som: Werner Herzog
Produção: Discovery Films
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Henry Kaiser, David Lindley
Elenco: Werner Herzog (narrador)


Quando ele [Herzog] desceu de um avião de transporte na Antártida para filmar Encounters At The End Of The World, levava consigo as Geórgicas de Virgílio – um livro que lhe trouxe clareza. Esse clássico agora é leitura obrigatória de seus estudantes de cinema em Los Angeles. 'Eu não sabia nada e não conhecia ninguém. Como é que a gente vai explicar um continente todo em seis semanas?' Decidiu-se a fazer o que Virgílio faz: 'Ele não explica nada, não é didático. Ele só fala da glória das macieiras e das colmeias e dos horrores da peste. Eu pensei: Nós vamos falar aqui, no gelo, da glória desta Antártida! E pessoas que nos sensibilizam vão contar algo a esse respeito'. 1

Herzog já chega avisando que este não é “mais um documentário sobre pinguins fofinhos” – como se alguém fosse esperar isso dele. Por mais que haja pinguins, focas [ainda que em situações não exatamente edificantes] e outros animais não tão fofinhos assim [os subaquáticos das profundezas], como também magníficas paisagens de pura vastidão do fim do mundo, permafrost acima e permafrost abaixo, o interesse do bávaro, pra variar, é outro, nunca o óbvio.

A pergunta com a qual ele desembarca na feiosa base norte-americana, a Estação McMurdo, é: por que alguém larga tudo por aqui e vai morar no fim do mundo? E o interesse especial não é nos pesquisadores, que passam grandes temporadas na Antárdida, mas em ‘gente comum’ que trabalha e se estabeleceu lá com trabalhos sem glamour. De filósofo a banqueiro, tem todo tipo de pessoa, com história ordinárias ou incríveis, operando escavadeira, fazendo solda ou sendo motorista de ônibus.  

Como diz a crítica norte-americana de cinema Manohla Dargis, “Herzog abre sua mente, coração e olhos para todos esses viajantes que - apesar da tensão persistente de melancolia que atinge cada pessoa que aparece na câmera - parecem assustadoramente em paz no fundo do mundo. Um dos motivos pode ser que, como Herzog, mais do que alguns evidenciam um profundo pessimismo sobre o presente e o futuro”. 2

Tudo bem que às vezes o diretor perde a paciência e resume as histórias malucas de como os pesquisadores foram parar lá, mas vamos, no geral, concordar com ela e com o crítico suíço [radicado nos EUA] de cinema Owen Gleiberman: “Ele quer que vejamos como esses pesquisadores peculiares, em sua ânsia de explorar, estão agindo de acordo com um impulso tão primitivo quanto a natureza: a necessidade de se afastar do mundo para encontrá-lo”. 3


planeta-hostilidade

Aqui temos um elemento-chave para talvez compreendermos o cerne do filme. Ninguém dá uma boa explicação do tipo “vim parar aqui por isso e isso”, são sempre várias hipóteses jogadas, como se nem eles soubessem por que estão lá, ou como se fosse absolutamente normal, como qualquer outro destino, físico ou spiritual, da vida. Herzog os define como “sonhadores profissionais”: envolvidos por suas respostas vagas e intrigantes, e vendo o diretor questionar o que levou, leva e levará o ser humano sempre em busca do desconhecido – destaque para imagens da épica expedição de Ernst Shackleton [1874–1922], cuja cabana segue preservada até hoje na Antárdida que ele tentou conquistar – ficamos pensando na repetição de expressões, por parte dos entrevistados, de termos como “cair da borda do mundo” ou “chegar ao final do mapa”. Para eles, é simplesmente pela liberdade de poder estar lá.

Esse “por que não?” reúne tais pessoas num sentido de solitude e desapego semelhante ao de monges enclausurados – não à toa, a trilha sonora é basicamente constituída de música cristã ortodoxa, e o próprio Herzog confirma a motivação: “Alguns dos mergulhadores, antes de entrarem no gelo, falam brincando sobre ‘entrar na catedral’. Há uma sacralidade estranha em algumas dessas paisagens debaixo d'água ou fora dela. É muito, muito estranho, e por meio dessa música do coro da Igreja Ortodoxa Russa você de repente entende e começa a ver. A música nos permite ver isso”. 4

Enquanto essas questões vão e vêm, vemos neste filme um resumo do pensamento de Werner Herzog Stipetić: embora mais solene e menos caótica e despropositada do que de costume, a natureza surge monolítica, impenetrável, solene e hostil. Não é um lugar onde deveríamos estar: somos presas facílimas tanto para as brutais intempéries quanto pras fantasmagorias que nadam sob nossos pés gelados.

Temos sequências totalmente bizarras, como o treinamento contra nevasca, que consiste em exploradores com baldes na cabeça [e cada um tem uma carinha desenhada], unidos por uma corda, simulando uma situação de visibilidade próxima a zero e nenhuma noção de espaço e distância; personagens com falas ora profundíssimas, ora nonsense, que nos deixam sempre com a dúvida se são reais ou inventadas pelo diretor; e cenas claramente encenadas como pessoas deitando na neve para ouvir os ruídos das focas “que parecem música eletrônica ou algo do pink Floyd”.

homens-balde


E todas as pessoas que parecem no filme, dos finados exploradores Schackleton e Roald Amundsen [1872–1928] aos trabalhadores das estações de pesquisa, são claramente personagens herzogianos por definição: grandiosos e absurdos. O espírito explorador como destino natural do homem. E é por esse prisma que chegamos à questão final de Encounters At The End Of The World: falamos do fim geográfico do mundo, falamos do destino de casa pessoa, agora Herzog começa a discorrer sobre nosso fim no mundo; qual o sentido de estarmos aqui e fazermos o que fazemos?, e, mais do que isso, como lidar com nosso deixar-de-existir individual e coletivo, spiritual e cultural?

Estamos aqui e fazemos parte da natureza, inclusive interferindo nela – é assustadora a simulação por computador de como a Antárdida deixou de ser um infindável maciço impávido para tornar-se ele mesmo um iceberg que despeja seus enormes glaciares no oceano – mas podemos deixar de existir, seja por nossa interferência, ou, como crê o alemão, por uma catástrofe fortuita como a que extinguiu os dinossauros e permitiu que surgíssemos e sobrevivêssemos.

Nós, nossos sonhos, nossa cultura, até nossa linguagem, tudo morreu, more, morrerá. A natureza, de qualquer forma, permanecerá, se recuperando, como sempre faz. E é aí que Herzog tem o provável momento de maior humanismo de sua cinematografia: questiona que, não fossem essas pessoas na infinitude gélida, aquilo seria apenas um grandíssimo ponto no mapa – mas, ainda sim, só um ponto – desconhecido. Trata-se, curiosamente, de um ponto de vista semelhante ao cristão, de que Deus fez o homem para que o conheça e o ame.

E o que fazer até nossa extinção [individual ou como espécie]? A [não-]resposta está na amarga sequência em que um pinguim desnorteado [“enlouquecido?”] se desgarra do bando e vai continente adentro, se afastando da sobrevivência junto ao mar e à espécie e abraçando a morte inevitável.


pinguim-absurdo

Assim como temos personagens herzogianos humanos – o crítico britânico de cinema Peter Bradshaw aponta que talvez “uma foto antiga do navio de Ernest Shackleton preso no gelo lembrava a Herzog de um navio a vapor sendo arrastado por uma montanha5, temos esse Pinguim-Aguirre, rumando, insano e só, para o vazio e a última derrota. Talvez estejamos todos rumando, desde sempre e para sempre, nesse infindável caminho a lugar algum, a qualquer lugar, a todos os lugares.

Melhor filme desta maratona desde Grizzly Man. Consegue trazer tudo que o diretor tem de melhor. Vai ao mesmo tempo te entreter e te deixar com muitas questões na cabeça. Recomendo muitíssimo, é imperdível. E até 2021, que tem mais #MaratonaHerzog



Curiosidades:

- Herzog esteve por quase sete semanas na Antártida, mas a primeira delas foi gasta tanto em burocracia quanto em treinamentos de sobrevivência - sem os quais você não é autorizado a deixar a base -, então houve um mês e meio para as filmagens;

- a cena de cientistas colocando seus ouvidos no gelo para ouvir os chamados de focas foi inteiramente encenada - Herzog pediu que eles se posicionassem de acordo com suas instruções, e os sons foram previamente gravados por microfones subaquáticos pelo compositor e engenheiro de som Douglas Quin;

- o filme é dedicado ao renomado crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942-2013), que, justamente por isso, não pôde resenhar o fime, mas escreveu uma carra ao diretor, posteriormente tornada pública;

- Encounters At The End Of The World concorreu ao Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem de 2009;

- executivos do Discovery Channel ficaram descontentes com os comentários do diretor sobre "a abominação dos estúdios de aeróbica e turmas de ioga" na Antártida, assim como referências ao Darwinismo (!), e, diante da negativa de Herzog retirar tais trechos, os chefões do canal resolveram distribuir o filme por um décimo do que havia sido investido;

- Herzog foi atraído para a Antártida depois de ver imagens subaquáticas filmadas por Henry Kaiser – filmadas tanto em expedições científicas quanto em seu projeto Slide Guitar Around the World –, que durante os trabalhos na trilha sonora de Grizzly Man, estava mostrando a filmagem para um amigo quando Herzog percebeu;

- dois anos depois desse ocorrido, Herzog lançou The Wild Blue Yonder, que fez uso proeminente das filmagens de Kaiser.

terça-feira, 9 de junho de 2020

(2006) Rescue Dawn


EUA | 126min | 35 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Irma Strehle
Som: Paul Paragon
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Klaus Badelt, Ernst Reijeger, Popol Vuh
Elenco: Christian Bale (Dieter Dangler), Steve Zahn (Duane Martin), Jeremy Davies (Gene DeBruin), Marshall Bell (almirante), François Chau (governador da província), Craig Gellis (cabo), Zach Grenier (sargento), Pat Healy (Norman), Toby Huss (Spook)


De certa maneira, Rescue Down, a ideia do longa, sempre esteve em primeiro lugar. Quando conheci Dieter, tive a sensação de que essa era uma história grandiosa, com um personagem de dimensões heróicas. Mas, como foi preciso bastante tempo para juntar o dinheiro para o longa, fizemos o documentário primeiro.1

Lembram de Little Dieter Needs To Fly, documentário feito pra tevê alemã sobre o alemão Dieter Dengler (1938–2001), piloto de avião que se alistou na aeronáutica americana, e em uma missão no Laos, às portas da Guerra do Vietnã, foi abatido e feito prisioneiro, sofrendo cruelmente na mão dos captores até conseguir fugir através da selva?

Pois Rescue Dawn (no Brasil, O Sobrevivente) é um filme sobre a mesma história, concentrado unicamente no período que compreende sua queda, seu aprisionamento e sua fuga. Não tem muito o que dizer além disso sobre a história, visto que tudo está bem detalhado no post linkado acima, sobre o documentário. Então, pra este texto não ficar repetitivo ou banal, recomendo uma lida lá antes de prosseguirmos aqui. Feito isso, continuemos.

Herzog insiste, em diversas entrevistas à época do lançamento do filme, na necessidade de duas versões da mesma história: “Quando eu assisti ao filme pela primeira vez com Dieter, as luzes se acenderam e ele se virou para mim. ‘Werner’, ele disse sem perder o ritmo, ‘este é um assunto inacabado’. A história de Dieter e Duane sempre foi a que eu queria contar em um filme, uma história de amizade e sobrevivência. Apesar de Rescue Dawn ter ficado em segundo lugar, em espírito foi realmente o primeiro filme. Little Dieter... foi fortemente influenciado por um longa-metragem que ainda havia sido feito”. 2

Além disso, o diretor sempre fez questão de justificar a inclusão de Rescue Dawn em sua mitologia fílmica, de modo que não fosse desnecessário ou inadequado à sua cinematografia: “Para mim, as paisagens e a natureza sempre formam uma oposição a nós. Por exemplo, a selva em Fitzcarraldo é o lugar dos sonhos febris da imaginação, do mistério, do inacreditável. É como se a selva fosse uma qualidade humana. No caso de Rescue Down, eu diria que o filme é muito físico. Você vê os prisioneiros que escapam abrindo caminho em meio à mata mais cerrada, os cipós mais grossos. É uma selva que é quase impossível de se atravessar. Você olha para ela e se pergunta como um ser humano conseguirá penetrar nela um metro sequer, mas eles estão entrando, e a câmera está logo atrás. É quase como se nós, como plateia, fôssemos mais um fugitivo, ao lado deles. Então é uma qualidade direta que é muito física, algo do qual gostei muito.” 3



Um dia especialmente ruim

Em entrevista à estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, Herzog dá mais uma pista para o que ele considera o filme e o documentário como obras complementares: “'Tivemos muito cuidado para reconstituir e estilizar a realidade de Dieter. Era necessário que se transformasse num ator que representa a si próprio', explica Herzog, a propósito do método de trabalho desse filme, e novamente escolhe intensificar a realidade a inventar histórias sugeridas por pormenores e detalhes reais”. 4 Grazia acrescenta: “O fato de essa história ter se tornado um filme de ficção clarifica ainda mais o percurso de estilização em que insiste o diretor alemão”. 5

O crítico britânico de cinema Jonathan Romney concorda: “Os filmes de Herzog, especialmente onde o homem e a natureza estão envolvidos, geralmente são pessimistas, mas Rescue Dawn marca uma mudança distinta: Dengler, como sabemos, sobreviveu para contar sua história, segundo todos os relatos, com sua mente e sua humanidade intactas. A imagem mais caracteristicamente herzogiana aqui é dos olhos de Bale, olhando ferozmente de um arbusto, mas Dengler é salvo da beira do abismo”. 6

A crítica norte-americana de cinema Lisa Schwarzbaum cita um dos motivos pelo qual Dieter Dangler interessaria tanto o cineasta: “Seu compatriota, Herzog disse [ela não diz a fonte da afirmação], personifica tudo o que o cineasta ama na América: ‘Coragem, perseverança, otimismo, autoconfiança… ele era o imigrante por excelência nos Estados Unidos - um jovem que chegou com um grande sonho e passou a representar o melhor do espírito americano’”. 7

Vários críticos ressaltam o cuidado com o ritmo e a preferência pela construção da trama – no caso, o plano de fuga e a relação dos prisioneiros entre si e com seus captores –, em detrimento da ação, o que seria comum num filme hollywoodiano de 2006. Nisso, Rescue Dawn se assemelha mais à produção norte-americana dos 1970s.

Romney, por exemplo: “O filme não é apenas meticulosamente preciso em seu relato do procedimento de fuga, mas também é muito econômico ao evocar o modo como o cativeiro encolhe a alma: vemos Gene ansiosamente olhando por um antigo rótulo de lata de feijão, o equivalente do homem faminto a uma página central da Playboy [foi horrível essa analogia, mas enfim]. A tentativa de Dieter de aumentar o moral compensa no seu aniversário com um brinde de ‘champanhe’ improvisado, feito de larvas de insetos esmagadas”. 8

Lisa também ressalta os aspectos opostos ao que esperamos de um filme de guerra ou fuga da prisão: “Rescue Dawn é um filme triunfante de Werner Herzog. É uma destilação madura, realmente, do que o diretor faz da melhor maneira possível, tirando do caminho qualquer decoração desnecessária (nenhuma conversa de prisioneiro a prisioneiro sobre namorados em casa, nenhum comentário político, nenhuma narração autoral destacada emocionalmente em sotaques cantantes) para permitir que atores excelentes reconstituam manobras incríveis que homens reais realmente fizeram.9

O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert, fã declarado de Herzog, completa: “Em Rescue Dawn, filmado nas selvas da Tailândia, nunca há a menor dúvida de que estamos na selva. Não há estrelas de cinema rastejando atrás de arbustos envasados em um lote traseiro. A tela sempre parece molhada e verde, e os atores atravessam a vegetação sufocante com dificuldade. Quase podemos sentir o cheiro da podridão e umidade”. 10

Werner Herzog corrobora as análises positivas: “A guerra realmente não leva em consideração o filme. Em cinco minutos acabou. Dieter Dengler foi abatido aos 40 minutos em sua primeira missão. Essa era a verdadeira história por trás disso. E o filme Rescue Dawn não lida com a Guerra do Vietnã. Naquela época, em 1965, a Guerra do Vietnã ainda não era uma conflagração total da guerra. Ninguém acreditava que isso se tornaria um conflito tão grande. E, claro, número um, sou contador de histórias. Número dois, estou tentando analisar profundamente nossa condição humana, entender o coração humano, e é por isso que tento apontar: não se deixe enganar, não pense que este é um filme de guerra. É, como eu disse, um teste e prova de homens. 11 (...) É a fisicalidade da selva que me atrai - a beleza iminente e perigosa nela. Mas nunca usei uma selva como pano de fundo cênico. É sempre como uma paisagem interior, como febre sonha com uma paisagem. [Tem] uma qualidade humana. Rescue Dawn precisava estar em uma selva no sudeste da Ásia e, de certa forma, é o meu filme mais físico. É mais físico que Aguirre”. 12


O sempre ótimo Christian e um surpreendente Steve

É inegável que temos diversos elementos tipicamente herzogianos aqui (do contrário, o alemão não teria feito dois filmes sobre a mesma história): a luta do homem contra a natureza, sendo esta sempre hostil e enlouquecedora, levando os personagens aos limites físicos e mentais, surge de forma inequívoca aqui. Porém, discordo da comparação com Aguirre, Der Zorn Gottes; tem mais a ver com o ótimo, mas convencional em sua narrativa, Fitzcarraldo, até em seu desfecho anticlimático, até mesmo decepcionante.

A humanidade com que os personagens são retratados também se estende aos algozes em alguma medida, como nota o crítico norte-americano de cinema [inclusive um dos editores do site de Roger Ebert] Matt Zoller Seitz: “No passado, Herzog foi criticado por sua tendência de tratar os residentes do terceiro mundo como parte do cenário, mas em Rescue Dawn ele tem empatia pelos captores de Dengler. Eles são prisioneiros também. Eles são cruéis porque estão entediados e deprimidos, mas ocasionalmente demonstram bondade. Quando eles consideram executar os prisioneiros e abandonar o campo, Herzog deixa claro que esse curso potencial de ação não é evidência de um mal subumano, mas um plano desesperado elaborado por homens que não têm comida suficiente para alimentar a si e a seus reclusos, e preferem apenas ir para casa para suas famílias”. 13


Matt, no entanto, pondera: “O filme não está isento de falhas. A base da história, na verdade, não a previne contra acusações de previsibilidade. A trilha de Klaus Badelt pode ser intrusivamente enfático. E o final triunfante - em que Dengler é recebido de volta à sua frota com aplausos e discursos - é decepcionantemente convencional. 14

A família de DeBruin não curtiu muito o filme, tanto que Jerry DeBruin, irmão de Gene, fez um site chamado Rescue Dawn The Truth [aparentemente já fora do ar], alegando que vários personagens e eventos foram falsamente retratados  - o que é até normal por questões de fluidez da narrativa, mas fez com que diversos atos heroicos dele e de outros prisioneiros (o tailandês Pisidhi Indradat, outro sobrevivente do grupo, também reclama disso na página) fossem ou creditados apenas a Dieter ou simplesmente retirados da história.


Por exemplo, o site afirma que, durante sua prisão, DeBruin ensinou inglês a seus colegas de cela, compartilhou sua comida e até voltou depois de escapar para ajudar um colega de cela ferido. Herzog reconheceu que DeBruin agiu heroicamente durante sua prisão, recusando-se a sair enquanto alguns prisioneiros doentes permaneciam, mas que não sabia disso até depois de o filme ser concluído; no entanto, Pisidhi Indradat e Jerry DeBruin declararam que fizeram várias tentativas de se encontrar com Herzog para garantir a precisão do filme, mas sem sucesso.


A selva é a prisão

Além disso, no filme, Dengler elabora todo o plano de fuga, mas, segundo Jerry DeBruin, os prisioneiros esperaram duas semanas antes de lhe contar o plano, que havia sido elaborado antes de sua chegada.

Mas enfim, Rescue Dawn precisava existir? Não, ainda mais com a existência de Little Dieter Needs To Fly. É um bom filme? Se você esquecer que é obra do Herzog, é um bom entretenimento, apesar do final anticlimático e banal; senão, vai achar tudo convencional demais para os padrões do diretor, a despeito do empenho de Christian Bale e de um surpreendente Steve Zahn, que realmente compraram a história. Também é interessante como é um filme de guerra + sobrevivência na salva totalmente fora dos padrões a que estamos acostumados: não adianta brigar com todo mundo, sair atirando e acabou – afinal, eles se libertam, porém estão no meio de uma selva no Laos, e aí fazem o quê? Como Duane explica a Dengler: "A selva é a prisão - você não entende?" Isso dá um interesse maior à narrativa, mas mesmo assim, é uma obra dispensável pra quem não seja muito fã dos atores ou da temática ‘sobrevivência na selva” – quem foi esperando um filme de ação, vai se decepcionar.


Curiosidades:

- o
filme foi inteiramente rodado em 44 dias e o primeiro corte tinha quase três horas;


- o filme foi filmado em continuidade inversa, de modo que Christian Bale, tendo trabalhado duro para perder peso para o papel, pareceria mais magro no final, e então poderia simplesmente ganhar os quilos de volta ao longo das filmagens;

- Christian Bale perdeu 25 quilos por seu papel, enquanto Jeremy Davies perdeu 15 quilos e Steve Zahn, 18; em uma demonstração de solidariedade, como muitos de seus atores perderam peso por seus papéis, o diretor perdeu quase 14 quilos;

- todos os guardas do campo de prisioneiros de guerra foram baseados em personagens verdadeiros da história de Dieter Dengler, exceto ‘Walkie Talkie’, que é criação do diretor;

- para se preparar para seu papel, Jeremy Davies leu Man's Search For Meaning, de Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do Holocausto, que escreveu sobre as reações psicológicas experimentadas pelos prisioneiros.

- a cena do acidente de avião é a única cena em que Christian Bale foi trocado por um dublê, Chris Carnel, que sofreu queimaduras leves no rosto devido ao episódio;

- para mostrar o quão impotente e desorientado um homem se sentiria depois de ser capturado e passar fome, o diretor insistiu que, embora sendo mantidos prisioneiros, todos os que eram destros devem usar predominantemente a mão esquerda e todos os que são canhotos devem usar a mão direita; em algumas cenas, Bale ficou extremamente confuso, mas o diretor garantiu que todos estavam assim, como desejado;

- na vida real, Dengler falava inglês com um forte sotaque alemão, que foi reduzido, na composição feita por Bale, ‘para quase zero’;

- o filme retrata seis prisioneiros no campo, enquanto, na vida real, havia sete; Herzog diz que achou difícil escrever o roteiro com sete personagens, e que seis era um número mais gerenciável;

- Dieter Dengler foi capturado não uma, mas duas vezes na vida real; a cena em que ele foi capturado enquanto bebia de um rio é baseado em sua segunda captura;

- quando Dieter é questionado sobre como ele se tornou um aviador naval, ele descreve uma experiência incrível de ver um avião de combate voando muito perto quando era criança na Alemanha em tempos de guerra; a experiência descrita é surpreendentemente semelhante à do personagem de Christian Bale, Jim, dezenove anos antes, em Empire Of The Sun (1987), de Steven Spielberg;

- o final excessivamente feliz retratado no filme realmente aconteceu com Dieter Dengler em seu resgate e, embora possa parecer um final brega de Hollywood para muitos espectadores, Herzog achou que mudar o desfecho não seria um bom tributo ao personagem principal, além de talvez não não combinar com a sensibilidade de alguns membros da platéia;


- após seu lançamento nos cinemas, em 2007, Rescue Dawn foi indicado para diversos prêmios, como o Golden Satellite Award e o Independent Spirit Award, e Christian Bale venceu o prêmio de conjunto da obra no San Diego Film Critics Society.




1 3 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0712200707.htm
2
Herzog, Werner. In.: Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
4 5 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
6 8 https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/reviews/rescue-dawn-12a-760436.html
7 9 https://ew.com/article/2007/07/02/rescue-dawn-3
10 https://www.rogerebert.com/reviews/rescue-dawn-2007
11 12 https://filmmakermagazine.com/archives/issues/summer2007/rescuedawn.php
13 14 https://www.nytimes.com/2007/07/04/movies/04dawn.html