terça-feira, 27 de maio de 2014

(1977) Stroszek

Alemanha (Berlim, Nova York, Wisconsin, Carolina do Norte) | 108min | 35 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Som: Haymo Henry Heyder
Música: canções de Chet Atkins, Tom Paxton, Sony Terry e Beethoven
Elenco: Bruno S (Stroszek), Eva Mattes (Eva), Clemens Scheitz (Scheitz), Wilhelm von Homburg, Burkhard Driest e Pitt Bedewitz (cafetões), Clayton Slzapinski (mecânico), Ely Rodriguez (indiano), Alfred Edel (diretor da cadeia), Scott McKain (bancário), Ralph Wade (leiloeiro), Vaclav Cojta (médico), Michael Gahr e Yücsel Topeugürler (presos)


Às vezes, fazer filmes é somente estilizar, mas em Stroszek estávamos lidando com sofrimento humano de verdade.” ¹

Herzog não exagerou na colocação acima: Stroszek é um de seus filmes mais brutais, talvez comparável somente a Auch Zwerge Haben Klein Angefangen em matéria de desolação.

Além disso, está perfeitamente inserido no contexto cinematográfico norte-americano dessa época de ressaca do flower power (que não deu em nada) e pessimismo por causa do Vietnã; essa safra de filmes que vai de Midnight Cowboy (1969) a Taxi Driver (1976), passando por Scarecrow, Serpico, Dog Day Afternoon e Alice Doesn’t Live Here Anymore, entre tantos outros, em que os sonhos individuais são sempre esmagados pela existência em coletividade.

De uma prisão para outra

Talento incompreendido

Inspirado em muitos aspectos da vida de Bruno S (de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle), o filme conta a história de Bruno Stroszek, músico de rua alcoólatra e com problemas mentais, recém-saído da prisão (não fica claro o crime cometido), que, cansado da vida difícil em Berlim, reúne seu amigo esquisito Clemens Scheitz e sua protegida, a prostituta Eva (frequente vítima de maus-tratos por parte de seus cafetões) e parte para a América (mais especificamente para Wisconsin), em busca de uma vida melhor.

Para o especialista em cinema alemão Brad Prager, "há uma boa quantidade de crueza realista urbana nas primeiras partes do filme, o que é pouco usual para Herzog”. ² E, dado o contexto da época e o tom do filme, não precisa pensar muito para saber que essa jornada está condenada ao fracasso desde o início: assim como em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, o personagem de Bruno S faz o percurso de uma prisão para outra.

Como notou o crítico brasileiro de cinema João Carlos Sampaio (1970–2014): “Interessante confrontar o tratamento cordial, honesto e zeloso que Bruno Stroszek experimentava no manicômio judiciário com a vida de homem livre na América, onde os que o cercam parecem bem menos amistosos”. ³

Na prisão, Stroszek tinha amigos (os companheiros de cela) e era bem tratado pelos funcionários, que também se importavam com ele. Lá fora, tanto em Berlim quanto nos EUA, o mundo é muito mais hostil: ele sai de um lugar onde toca e canta para ganhar dinheiro algum e ser maltratado pelos cafetões de sua amiga Eva (que logo se revelaria interesseira e ingrata), e mesmo as pessoas que o empregam na América zombam de sua condição mental.

O trio (aparentemente) inseparável

O crítico de cinema norte-americano Jonathan Rommey afirma que “certamente é um dos dramas mais frios já realizados sobre os sonhos europeus do que seja a América”. 4  E não significa que o filme critique os EUA ou o “Sonho Americano”. O fracasso seria inevitável em qualquer lugar, e a fria e cinzenta e sem-graça Wisconsin apenas serve de (perfeita) moldura para essa inviabilidade dos sonhos do protagonista.

Ele não entende direito o inglês, o que é mais um fato de isolamento, e não se anima com o trabalho. Enquanto isso, seu amigo se aliena com pesquisas sobre magnetismo animal (?) e Eva volta a se prostituir entre os intervalos de seu emprego de garçonete, e vai se afastando de Stroszek.

O representante do banco os visita todo dia, avisando que vão tomar de volta a casa-trêiler deles por falta de pagamento, e nem quando isso acontece Stroszek parece entender direito o que está acontecendo, pois passa os dias semibêbado no sofá.

Sem ter onde morar, com os bens leiloados, abandonado por Eva (que foge com caminhoneiros). Stroszek e Scheitz resolvem praticar um assalto para obter algum dinheiro. Sabemos que vai dar errado, só precisamos ver para saber como. E o desfecho, após a trapalhada de o banco estar fechado e eles acabarem assaltando uma pequena barbearia, é a prisão ridícula de Scheitz. Stroszek está novamente sozinho.

Em busca do sonho

Vivendo o sonho

Amargando o despertar

E o desfecho – quando Stroszek parte para um ultimo ataque contra toda a existência –, que inclui uma caminhonete girando em círculos (como em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen), um sistema de teleférico, uma espingarda e um parque de diversões vagabundo, é “um dos finais mais selvagens e sem perdão jamais colocados em filme”, 5 segundo Jonathan Rommey, que afirma que o final, com a infame cena da galinha (galináceos são obsessão do diretor desde Spiel Im Sand) girando em círculos, inexoravelmente, é “uma das imagens da condição humana – obsessiva e fora de controle – mais insuportavelmente cruéis que um diretor já apresentou ao público”. 6

O especialista em cinema alemão Rembert Hüser acrescenta: “A repetição é o que faz da sequência [final] em Stroszek tão dura de enfrentar. A galinha que Herzog encontrou não promete um novo começo, não promete encerramento. Ela simplesmente não para. Recusa-se a partir. É demais para ter alguma esperança”. 7

O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) conclui: “A galinha é uma ‘grande metáfora’, ele [Herzog] diz, sem saber ao certo para o quê. Minha teoria: uma força que não podemos compreender coloca algum dinheiro no ‘slot’, e nós dançamos até que o crédito acabe”. 8

A infame galinha giratória

Tal como o bebê prematuro tentando se agarrar a alguma coisa no primeiro terço do filme, Stroszek pensa – quase sempre em terceira pessoa, numa clara dissociação do sujeito – "Agora Bruno está entrando em liberdade", olhando o mundo por um vidro distorcido, tal como a metáfora do coração de vidro em Herz Aus Glas, pensando "Quando crescerei o bastante para poder ser amado?". 

Mas o fato é não há redenção possível, não existe lugar para ele em lugar algum. Ele está irremediavelmente condenado, preso na existência circular animalesca, inútil, sem qualquer sentido, mais uma coisa que deu errada no imenso universo de coisas que jamais dão certo de Werner Herzog.

Afinal, como o próprio diretor afirma, “Stroszek é sobre sonhos despedaçados9. E também é mais um filme maravilhosamente amargo e desolador, intenso e desafiador, profundíssimo em sua aridez desgarrada.

E, apesar de tudo isso, não é um filme ‘difícil’; a estrutura é convencional, às vezes poderia passar por um filme norte-americano da época, e não carece de ritmo, apesar da estrutura um tanto episódica e da diminuição da intensidade no segundo terço da história. Os cento e oito minutos de filme passarão voando, e te deixarão com um indisfarçável incômodo, um grande vazio.

Mais uma obra-prima imortal. Pare o que estiver fazendo e veja Stroszek agora mesmo (tem até em DVD no Brasil).


Curiosidades:

– O filme recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival das Nações de Taormina (Itália) em 1977 e o Prêmio de melhor filme no German Film Critics Award em 1978;

– Stroszek, que também batiza o protagonista de Lebenszeichen, é o nome de um colega dos tempos de faculdade de Herzog, que uma vez lhe passou cola em uma prova, e por isso foi ‘homenageado’ nessas duas ocasiões;

Stroszek foi criado de improviso (normal no universo herzogiano), para compensar o fato de que Bruno S fora preterido para o papel principal de Woyzeck (que seria filmado em 1979), em favor de Klaus Kinski;

– Inclusive o título Stroszek foi escolhido por ser semelhante a Woyzeck – tudo para agradar Bruno S;

Bruno S, digníssimo até o fim

– O roteiro foi escrito em 4 dias, com diversos traços biográficos de Bruno S, durante uma viagem do diretor para um vilarejo cinzento em Wisconsin, onde teria vivido (e matado) o célebre serial killer Ed Gein;

- O filme é dedicado ao documentarista norte-americano Errol Morris (1948–) por ambos estarem à época com planos de fazer um documentário sobre Ed Gein, o que nunca se concretizou;

– Com exceção do trio principal (Stroszek, Eva e Scheitz), todo o elenco é de não-atores;

– Quando, ao escolher aleatoriamente Clemens Scheitz em um catálogo de figurantes, Herzog foi avisado de que aquele senhor não estava mais muito bem da cabeça, teve certeza de que ele era a pessoa certa para o papel;

– Segundo Herzog, ao contrário de seu personagem, Bruno S adorou a América (especialmente Nova York) – e Clemens Scheitz não gostou muito de Bruno, pois achava que ele cheirava mal;

- O apartamento era realmente de Bruno na vida real, bem como o piano (comprado com o dinheiro de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle), que ele chamava de ‘amigo negro’;

– Algumas das canções que Stroszek toca e canta no filme são de autoria do próprio Bruno S;

– Herzog diz evitar até hoje rever o filme, pois muitas de suas cenas dolorosas (como a do protagonista sendo espancado pelos cafetões de Eva) refletem o tipo de sofrimento pelo qual Bruno S realmente passou em sua vida;

– Diversas cenas foram improvisadas de acordo com as memórias de Bruno S, como a sequência em que Stroszek conta a Eva sobre sua infância de solidão e dor no reformatório, especialmente quando ele urinou em sua cama e foi forçado a segurar os lençóis molhados por horas, até que secassem – ou apanharia;

Stroszek carrega a infâmia de ser o filme que Ian Curtis (Joy Division), viu sozinho em casa na noite em que cometeu suicídio, em 1980;

– O disco póstumo Still, do Joy Division, de 1981, carrega muitas referências ao filme, especialmente à cena final, da galinha;

– Entre as bandas que homenageiam o filme, temos o depressivo gothic rock italiano Stroszek (projeto de membros do Frostmoon Eclipse) e o melancólico folk uruguaio Bruno Stroszek;

– Um trecho de diálogo do filme foi usado pelo duo eletrônico experimental norte-americano Ratatat na canção Drugs, de 2010 (álbum LP4), e outra dupla do mesmo estilo, o alemão Die Vögel (“Os Pássaros”, referência a Hitchcock), usou cenas de Stroszek no clipe da faixa-título do EP The Chicken, de 2012;

– A famosa "cena final da galinha" de Stroszek é homenageada quase literalmente n'Os Aneis De Saturno (1995), do escritor alemão WG Sebald (1944–2001);

- O leiloeiro dos bens de Stroszek é um dos competidores de How Much Wood Would A Woodchuck Chuck;

– A equipe inteira desgostou tanto da cena final com a galinha que Herzog teve que fazê-la inteira sozinho, e até hoje ele a considera sua obra-prima;

– Beate Mainka-Jellinghaus, montadora de longa data dos filmes herzogianos (e conhecida por não gostar deles), achou o filme tão incômodo e desagradável que pensou em desistir do trabalho assim que começou a vê-lo pela primeira vez, mas foi demovida da ideia pelo diretor, que a ameaçou com uma pá.


¹ 9 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
² PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
³ SAMPAIO, João Carlos. Stroszek Ou A Busca Vã Dos Desajustados. In: Os Filmes Que Sonhamos, de Frederico Machado. Lume Filmes, 2010.
4 5 6 ROMMEY, Jonathan. In: 1001 Filmes Para Ver Antes De Morrer (1001 Movies You Must See Before You Die), de Steven Jay Schneider. Editora Sextante, 2008.
7 HÜSER, Rembert. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. John Wiley & Sons, 2012.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

(1976) Mit Mir Will Keiner Spielen


Alemanha (Munique) | 14min | 16 mm | cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Som: Haymo Henry Heyder
Elenco: não creditado


Tentei descobrir como crianças de cinco ou seis anos percebem as coisas.” ¹

Feito sob encomenda para o Institut fur Film und Bild in Wissechaft um Unterricht (Instituto para o Cinema Científico e Didático), este adorável curta-metragem (cujo título significa "Ninguém quer brincar comigo") gira em torno de crianças da pré-escola (que, aliás, atuam com muita naturalidade), e seu roteiro foi escrito com base em experiências que os próprios atores-mirins contaram ao diretor.

Aparentemente é uma tentativa de campanha para que as crianças sejam mais sociáveis e compreensivas inclusive com os coleguinhas que acham “estranhos”. Para o estudioso de cinema alemão Brad Prager, no entanto, “em sua essência, esse filme é mais sobre a virtude de compartilhar”. ²

A história é bem simples: Martin é um menino que fica isolado do resto da turma, sozinho no canto da sala, porque ninguém quer brincar com ele. As outras crianças comentam entre si que ele é sujo, usa roupas velhas, mora numa casa feia, não tem o que comer (só come pipoca), e por isso o rejeitam.

Antes só...

Com algum esforço, Martin convence uma colega de sala, Nicole, a ir até a casa dele, para ver seu corvo falante de estimação. E então conhecemos seu corvo, sua casa, e descobrimos o porquê de o garoto parecer meio abandonado.

Daí o filme alterna momentos muito bonitos, como a alegria do saltitante Martin por finalmente ter uma amizade (ele até dá seu corvo de presente à menina), e a descoberta desse sentimento por parte de Nicole (“Esse idiota é meu amigo!”), com outros mais melancólicos, quando conhecemos a dura realidade familiar do garoto. E o final, apesar de tudo, é feliz e tocante, com direito à reconciliação com a turma e a um par de porquinhos-da-índia.
...depois bem acompanhado.

Não tem cara de filme do Herzog, eu sei. É bem mais singelo, delicado, ingênuo mesmo, do que a filmografia costumeira do diretor. Afinal, sabemos que o alemão não costuma se envolver muito nos projetos que faz sob encomenda.

Também não sei o que o tal Institut fur Film und Bild in Wissechaft um Unterricht tinha na cabeça quando chamou Werner Herzog para fazer um filme infantil – sim, pois o público-alvo, não se esqueçam, são crianças da idade de Martin e Nicole.

O resultado, até pelo aparente pouco interesse do diretor (não duvido de que ele nem se lembre deste Mit Mir Will Keiner Spielen), é um filme tecnicamente cru (parece um documentário) e de resolução final um tanto corrida (até pelo curto tempo de projeção).

Mesmo assim, recomendo vê-lo, até porque é bem curto. E, de certa forma, temos, em formato mirim, um autêntico personagem hergoziano em Martim, inadequado, desolado, solitário, um tanto esquisito. Não é uma ruptura em sua obra.

E vale o ensinamento que o filme traz: 

Não existem crianças-problema, apenas pais-problema.” ³


Curiosidade:

- o corvo da história é uma óbvia referência ao animal que acompanhava a solitária infância do protagonista de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner.


¹ PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
² PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

(1976) How Much Wood Would A Woodchuck Chuck

Alemanha (Pensilvânia, EUA) | 45min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Som: Walter Saxer
Elenco: Steve Liptay, Ralph Wade, Alan Ball, Abe Diffenbach outros participantes do campeonato mundial de pregoeiros dos leilões de gado

 

Eu estava fascinado pelos pregoeiros de leilão e sempre tive o sentimento de que sua incrível linguagem era a real poesia do capitalismo. Todo sistema desenvolve seu próprio tipo de linguagem extrema, como os cânticos rituais da Igreja Ortodoxa, e há algo definitivo e absoluto na linguagem que os leiloeiros usam. Depois daquilo, até onde dá para ir? É ao mesmo tempo assustador e belo; há uma verdadeira musicalidade na entrega do discurso, no senso de ritmo que essas pessoas têm. É quase como um encanamento ritual.” ¹

Feito para a televisão alemã, How Much Wood Would A Woodchuck Chuck (trava-línguas usado por um dos competidores, e que significa algo como “Quanta madeira morderia uma marmota”), cujo subtítulo é Beobachtungen Zu Einer Neuen Sprache (“Observações sobre uma nova linguagem”) é um documentário que mostra o 13º Campeonato Mundial dos Leiloeiros de Gado, realizado em 1975, em Fort Collins, no Colorado.

O competidor

Todo mundo quer ser especial, diferente, melhor em alguma coisa, admirado. E esses homens querem ser os melhores em narrar leilões muito, muito rápido. Tão rápido que mal dá para distinguir as palavras, é mais o som de um berimbau sendo tocado. A linguagem se dissolve em figuras, cadências e gestos quase imperceptíveis entre compradores e vendedores.

Herzog está tão interessado, mais uma vez, nos limites da linguagem – no caso, uma linguagem criada por um sistema econômico –, que nem se dá ao trabalho de dizer os nomes dos competidores ou contextualizá-los: seus depoimentos surgem e se vão todos iguais, tolos e vazios, sem qualquer interferência do diretor. Aliás, só sabemos o nome do vencedor porque este é anunciado no sistema de som do evento.

Em suas palavras: “Meu sonho desde então tem sido voltar no tempo e fazer uma versão de Hamlet em menos de quinze minutos. Todos os participantes do campeonato mundial de leiloeiros recitando Shakespeare. Isso seria grande poesia.” ²

Enquanto isso, após cenas bucólicas sob trilha folk, conhecemos os amishes da região, protestantes conhecidos por renunciar à modernidade: evitam usar eletricidade, têm grande autonomia de subsistência (não só alimentícia), mantém escolas próprias, fazem as próprias roupas tudo para não depender de “gente de fora”. Eles, que sequer têm a expressão “campeonato mundial” no vocabulário, aparentemente estranham a movimentação dos vizinhos leiloeiros-competidores, mas, mesmo assim, oferecem lanches e doces a eles.

O amish

E logo vemos que alguns amishes também participam dos leilões – ou seja, aparentemente é inevitável a cooptação/assimilação do indivíduo social pelo sistema capitalista, mesmo nessa faceta mais estúpida. Nesse caso, são duas seitas, ambas cheias de hermetismos e estranhezas, alienações e dogmas, se encontrando numa área rural dos EUA.

[Talvez, no fundo, os amishes também queiram ser diferentes e especiais, pela via da renúncia à grande população, ou os amishes que vão ao leilão queiram fazer parte daquela outra exclusividade dentro da exclusividade deles, mas o filme não entra nesse mérito, é apenas especulação minha.]

Segundo o estudioso de cinema alemão John E. Davidson, “as simples escolhas de Herzog em filmar primariamente vários competidores através do dia permitem que o espectador desenvolva um senso generalizado de ‘vencedores’ – os três melhores (que conhecemos no início do filme) são uma extensão deslocada disso, que nós conhecemos durante o documentário”. ³

O gado

Davidson também crê que essa divisão entre vencedores x perdedores, nós x eles, os que têm x os que não têm, “nos ajuda a entender melhor o que Herzog descobre em seus documentários norte-americanos”. 4

[Isso vai ficar bem claro na cruel pintura do “sonho americano” que o diretor fará no ano seguinte, em Stroszek.]

Este filme, tanto pelo hermetismo da linguagem esquisita, quanto pelos quadrúpedes presentes, e também pelo ridículo da situação, tem parentesco com Massnahmen Gegen Fanatiker, e também padece dos mesmos defeitos.

How Much Wood Would A Woodchuck Chuck começa bastante intrigante, com a apresentação dos competidores, suas explicações algo vazias, e a guinada da história para a apresentação dos amishes. No entanto, quando começa o campeonato propriamente dito, são dezenas de minutos daquele som de corda de berimbau vibrando, gado indo e vindo, e compradores fazendo gestos típicos do gestual das partidas de truco. E o final, anticlimático, é decepcionante.

Mais um Herzog só para fanáticos mesmo. Ou no máximo, para ser visto só até a metade.


Curiosidades sobre o filme:

– O campeonato de narradores de leilão – World Livestock Auctioneer Championship, organizado pela Livestock Marketing Association – existe desde 1963 e tem até site.

– Um dos participantes do campeonato é o mesmo que vai leiloar a casa de Bruno S em Stroszek (1977).


¹ ² HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
³ 4 DAVIDSON, John E. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. John Wiley & Sons, 2012.