Alemanha (rodado em Níger) | 52min | 16 mm |cor
Roteiro, direção e produção: Werner Herzog
Som: Walter Saxer
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Gounod, Sänger, Mozart, Handel e Verdi
Elenco: tribo Woodabe
Co-produção
entre TVs alemãs e francesas, este média-metragem volta sua atenção
para os wodaabes, tribo nômade do Sahel, região ao sul do Saara.
Considerando a si mesmos o povo mais belo do mundo, eles possuem uma
festa da fertilidade que dura dez dias, a qual inclui uma espécie de
concurso próprio de beleza, em que cada homem jovem tenta mostrar às
mulheres que é o mais bonito, na esperança de ganhar uma namorada.
O próprio Herzog detalha o processo: “Durante
os preparativos para o concurso de beleza, grupos de jovens nos
acampamentos brincam e dão risada, tornando-se tão bonitos quanto
possível; eles se vendem e se maquiam com corantes naturais triturados
em pó. Alguns levam um dia inteiro para se preparar para o festival, que
começa ao amanhecer e dura cinco dias. Pensa-se ser particularmente
bonito mostrar o máximo dos dentes e o quanto possível do branco do
globo ocular, e alguns dos homens reviram os olhos para cima, como se
estivessem em êxtase. Uma sucessão de danças e rituais complexos são
realizados, com os homens em linhas retas, caminhando para a frente,
fazendo uma careta em êxtase, em seguida, recuando até o momento da
decisão, quando o vencedor é escolhido”. 1
Os homens mais bonitos do mundo |
Além disso, o filme se ocupa um tanto da triste (e contrastante com seus alegres rituais) situação da tribo à época: devido a uma grande seca em 1984, os wodaabes tiveram de deixar o Sahel e se abrigar em um campo de refugiados nos confins da Argélia, onde obviamente se sentiam deslocados (ainda que fossem nômades) e de temiam jamais conseguir sair.
Logo após Cobra Verde, imediatamente antes de Echos Aus Einem Düsteren Reich (1990) e tendo no currículo Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika e Fata Morgana,
Herzog volta à África, pela qual é fascinado a ponto de torná-la um
personagem, um protagonista (como já fizera assumidamente em Cobra Verde e, de certa forma, em Fata Morgana).
Como explica a estudiosa inglesa de cinema alemão Erica Carter, “Herzog
dirige sua fascinação com a África para a suposta afinidade do
continente com o 'primordial', o 'arquetípico', 'caos e escuridão. Muito
como [Joseph] Conrad [1857–1924], cuja ficção ele admira
muito, Herzog retorna à África repetidamente como uma fonte de verdade
estética extática a que sua filmografia aspira”. 2
A consequência disso, segundo o estudioso norte-americano de cinema alemão Eric Ames, é que “em
vez de organizar o filme em torno de uma única pessoa, como ele faz em
outros lugares, Herzog representa os wodaabes como um corpo coletivo de
não-ocidentais”. 3
O
fato é que o diretor não tem nenhuma pretensão de analisar a fundo os
wodaabes e suas questões ou seus hábitos. Não é que ele não se interesse
pelos indivíduos, pelo contrário; além de seu interesse pelo
personagem-África, a escolha de se deter em apenas dois aspectos da
tribo (o ritual amoroso e a diáspora) manifesta uma recusa em fazer uma
obra etnográfica/antropológica (até por que já havia vários
documentários sobre os wodaabe à época).
Eric Ames detalha: “Herzog
não faz nenhuma tentativa de retratar todo um modo de vida do ‘ponto de
vista nativo’, nem tem a pretensão de ‘preservar’ seus traços em forma
de arquivo. Ele, obviamente, não está tentando ter seu trabalho aceito
como a antropologia ou autenticado por especialistas”. 4
E o próprio diretor deixa claro: “Eu
propositadamente me afastei de qualquer coisa que pudesse ser
considerada antropológica. Na cena de abertura, do bizarro concurso de
beleza masculina, os homens da tribo estão rolando seus globos oculares,
exaltando a brancura dos seus dentes, e fazendo caretas de êxtase. O
fato de que eles estavam sendo filmados não fez diferença; eles foram
completamente imersos no espetáculo. Esses jovens são tão
descontroladamente estilizados, por que não deveria ser também?” 5
Seu
interesse, como sempre, é a busca da verdade extática, e ela está
concentrada no ritual de embelezamento dos homens para conquistar as
mulheres da tribo; porém – e não se sabe se essa era a intenção original
do diretor ou se a questão surgiu durante as filmagens –, a história é
levada para um evidente traço de conflito, inadequação, dos wodaabes
para com a modernidade.
O especialista norte-americano em cinema alemão Brad Prager ilustra bem a problemática: “Vemos uma incursão do século 20 em uma cultura ancestral, como mostrado em Fata Morgana. Herzog inclui cenas de crianças em Arlit [cidade industrial em Níger] enquanto
fuçam comida no lixo. Um homem da tribo, forçado a viver na cidade, diz
à câmera: ‘Aqui está a areia da amargura’”. (...) “O que interessa mais
do que qualquer coisa nesse povo para Herzog são seus hábitos nômades –
Herzog está sempre interessado em andarilhos e pioneiros – tanto quanto
na recusa deles em carregar a bagagem do século 20. Eles têm pouco além
de seus dotes e algumas necessidades básicas. O século 20 é uma
dificuldade para esse povo digno”. 6
Areia da amargura |
Essa
dignidade é deixada bem claro no modo como Herzog retrata a pureza como
dogma para os wodaabes, um povo que, ao mesmo tempo leva uma vida muito
simples e humilde, com privações na modernidade e sem qualquer
sofisticação, ainda mantém a vaidade primordial de se achar especial, o
povo mais belo que há. Isso faz com que esse "coletivo não-ocidental" apareça evidentemente idealizado, como já eram os aborígenes de Wo Die Grünen Ameisen Träumen,
porém, sem o contraponto personalizado nos brancos; a opressão é
personificada nas mudanças climáticas, no esgotamento dos recursos
naturais e no pouco tato com as minorias tribais.
A jornalista norte-americana Janet Maslin reforça: “O filme pertence ao crescente gênero de ‘ecotragédia’ [como já era Wo Die Grünen Ameisen Träumen],
apresentando evidências de que um conjunto outrora viável de costumes
pode agora ser obsoleto. Experientes no pastoreio de gado (o wodaabes
podem levantar acampamento em menos de uma hora) e totalmente
dependentes de bens comercializados para o gado no mercado, o wodaabes
sofreram os efeitos da recente seca e da fome e viram-se forçados a
viver na cidade, para a qual estavam totalmente despreparados”. 7
Outra conexão com Fata Morgana
– o olhar moderno sobre algo primordial que está se desfazendo – surge
na sequência de abertura, de longe a melhor coisa do filme, em que os
homens wodaabes, maquiados, exibem exageradamente seus dentes e olhos
para a câmera, enfileirados.
Herzog deixa claro como o filme se insere perfeitamente em seu cânome: “Na trilha sonora, ouvimos uma gravação de 1901 da Ave Maria de [Charles] Gounod [(1818–1893)], cantada
pelo último castrato do Vaticano, o que cria uma sensação estranha,
quase um êxtase, e estabelece um contraponto poderoso entre música e
imagens. (...) Isso significa que o filme não é um documentário sobre
uma tribo africana específica, mas uma história sobre beleza e desejo.
Sem a música, as imagens desse concurso de beleza masculina incrível e
bizarro só não nos tocaria tão profundamente”. 8
Concentração antes do êxtase |
Na época, houve certa polêmica sobre o uso de música “branca ocidental” como trilha específica para uma tribo africana ameaçada. Mas o diretor se defende com firmeza: “De outra forma, meu filme jamais teria existido. Queria usar a Ave Maria toda vez que filmei os close-ups dos wodaabes. Ninguém mais faria tal coisa. Gosto muito do filme. Cria um êxtase estranho”. 9
O filme tem ritmo bem rápido, a despeito de as sequências não serem muito lineares ou narrativas, e pouca coisa tem mais impacto que a brilhante sequência inicial, mas há vários momentos muito bonitos, como os diálogos apreensivos dos homens antes e depois do ritual, a conversa de Herzog com um casal envergonhado que passou a noite junto ou o jeito extremamente tímido como a mulher aponta para o homem escolhido.
Mas, no geral, é um filme para quem é fã do diretor ou tem interesse no tema, ainda que ele não seja tão bem desenvolvido assim. Porém, vale mencionar também a impactante sequência final, de puro pessimismo herzogiano, em que dromedários cruzam uma ponte cheia de gente e carros sobre o Rio Níger: junção de modernidade e antiguidade, com a inevitável degeneração desta, inevitável e desoladora.
Herzog explica um pouco a cena: “Simplesmente aconteceu de eu ver os dromedários sendo conduzidos através da ponte no meio de todos aqueles carros. Para mim esse é uma cena de verdadeira profundidade e beleza.” 10
Tem no YouTube, com legendas em inglês; veja pelo menos a sequência inicial, para ser inundado brevemente pelo êxtase herzogiano. Tornar-se brevemente um pastor do sol, seguindo os acasos e descasos da existência, porém, sempre com dignidade.
Curiosidades:
– estima-se que os wodaabes hoje sejam em torno de 10 mil;
– o “último castrato do Vaticano” citado por Herzog é o italiano Alessandro Moreschi (1858–1922), que também é o único castrato a ter registros musicais gravados;
– o compositor francês Charles Gounod compôs criou Ave Maria de modo à sua melodia se sobrepor ao Prelúdio Nº 1 Em Dó Maior, d’O Cravo Bem Temperado, de Bach, escrito 137 anos antes;
– entre Cobra Verde e este Wodaabe, Die Hirten Der Sonne, Herzog dirigiu, em 1988, o episódio Les Gaulois (12min) da série de curtas-metragens Les Français Vus Par..., do Le Figaro Magazine (só achei com áudio em francês, então não posso opinar sobre).
1 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
2 CARTE, Erica. Werner Herzog, African Sublime. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
3 4 AMES, Eric. Ferocious Reality: Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
5 8 10 HERZOG, Werner. In Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
6 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
7 http://www.nytimes.com/movie/review?res=9D0CE1DD1E30F93BA35756C0A967958260
9 HERZOG, Werner. In: Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.