sexta-feira, 28 de março de 2014

(1974) Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle

Alemanha (filmado na Alemanha e na Eslovênia) | 109min | 35 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Som: Haymo Henry Heyder
Música: Florian Frickle (Popol Vuh) e excertos de Mozart, Pachebel, Lasso e Albinioni
Elenco: Bruno S (Kaspar Hauser), Brigitte Mira (Käthe), Walter Ladengast (professor Daumer), Willy Semmelrogge (diretor do circo), Michael Kroecher (Lorde Stanhope), Hans Musäus (homem desconhecido)


No domingo de Pentecostes de 1828, recolhemos na cidade de Nuremberg uma criatura abandonada que, mais tarde, chamamos de Kaspar Hauser. Ele mal sabia andar e só pronunciava uma frase. Contou-nos que, logo após nascer, viveu preso num calabouço, onde desconhecia o mundo exterior e a existência dos seres humanos, pois lhe deixavam alimento à noite, enquanto ele dormia. Não tinha noção do que era uma casa, uma árvore ou uma fala, até que um homem entrou onde ele jazia. O mistério de sua origem nunca foi esclarecido.” ¹


Solidão do início ao fim

O que é ser humano?

A pergunta que surge na obra herzogiana pela primeira vez em Land Des Schweigens Uder Dunkelheit ressurge três anos depois neste filme inspirado na intrigante história, até hoje não solucionada, de Kaspar Hauser.

Herzog acrescenta: “Na verdade, quanto a Fini Straubinger em Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, Bruno em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle e Dieter Dengler [de Little Dieter Need To Fly, de 1997], essas pessoas são pontos de referência não apenas para meu trabalho, mas para minha vida”. ²

Nas palavras do estudioso de cinema alemão Brad Prager, "Herzog continua a fazer retratos de protagonistas que são de alguma forma 'inúteis' e, assim, em desacordo com o mundo ao redor deles
. ³ Kaspar Hauser é o típico anti-herói herzogiano: desajustado, inadequado, obcecado por suas verdades, até um fim desolador.

No entanto, diferentemente de Aguirre, que ambiciona dominar o mundo, Kaspar só pretende entender a parte que o rodeia, aquilo que ele descobriu havia pouco tempo. "Além disso, Aguirre sente que a terra treme sob seus pés – que ele é a Ira de Deus – enquanto Kaspar sente que sua vinda a Terra foi nada além de um grande erro. Os dois personagens, o irado Aguirre e o dócil Kaspar, surgem como imagens invertidas um do outro", Brad conclui. 4

Após a mensagem do início deste texto, o filme mostra Kaspar Hauser em sua cela, brincando com um cavalo de brinquedo, até que um homem encapotado, de chapéu, entra, conversa com ele com certo afeto. Do dia seguinte, Kaspar, que mal consegue ficar em pé sozinho, é deixado no meio da cidade com uma carta que conta sua (suposta) história.

Kaspar e seu misterioso (e cruel) tutor



Desse ponto em diante, Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle mostra a trajetória de Kaspar Hauser, da sua chegada a Nuremberg, quando é tratado como bicho, passando por sua penetração na sociedade, como alvo de curiosidade às vezes mórbida, até seu fim, com sua adaptação à civilidade e seu posterior assassinato, até hoje não solucionado.

Há incontáveis tratados sociopsicológicos sobre o filme na internet, tanto leigos quanto acadêmicos, de modo que não vou me alongar muito nessas questões, e sim tentar resolver essa obra apenas no contexto do diretor alemão.

O percurso de Kaspar Hauser é de uma cadeia para outra cadeia: da jaula física do início do filme, até as grades metafísicas que o prendem na ordem social vigente, limitando seu comportamento, o fazendo caber nos escaninhos da sociedade, da igreja, da família, da autoridade. E mesmo morto sua trajetória é resumida numa caixa conceitual fechada, bem aos moldes da época: seu cérebro era deformado, pronto, temos todas as respostas, fim.

É o único caso conhecido de um indivíduo que “nasceu” como adulto. Chegou à sociedade tendo perdido completamente sua infância e juventude, tendo que comprimir todo esse tempo de aprendizado em dois anos e meio. E o mais impressionante é que, após esse tempo, ele podia falar bem, escrever e até mesmo tocar piano com destreza.



"Por que tudo é tão difícil para mim?"

Kaspar Hauser, enquanto descobre o mundo “lá fora”, faz com que a população de Nuremberg seja confrontada, a todo momento, com uma forma diferente de ver as coisas, uma lógica nova em folha, sem contaminação por quaisquer normas ou dogmas. “É um filme sobre a descoberta e a compreensão do mundo, sobre ver o mundo pela primeira vez”, diz Herzog. 5

Sua intuição é tipicamente pré-socrática, muito longe do cartesianismo, do positivismo, das associações significante/significado. Suas inferências corretas sempre levam a conclusões "erradas" do ponto de vista lógico. Para ele, uma grande torre só pode ter sido construída por um homem muito alto. Não entende que "do nada Deus criou tudo, como vocês disseram", não consegue "admitir o mistério da fé sem tentar entender" (inclusive se irrita com o cantochão dos fieis na missa). Faz contestações à sociedade da época (“Pra que servem as mulheres?”) e até à ordenação arbitrária das coisas na natureza.

Quanto mais entende a sociedade, menos quer fazer parte dela. Chega a dizer que preferia o tempo em que vivia em um calabouço e nem distinguia entre sonho e realidade.

Afinal, fica claro para ele e para o espectador o quanto a sociedade, e as coisas que apreendemos dela (linguagem, lógica, valores, religião, cultura, comportamento) afetam – negativamente – nossa capacidade de conhecer e entender a existência. Isso inclui até a benevolência paternalista e estúpida de seus tutores.

Esses conceitos pré-determinados limitam as ideias de tal modo que é como se elas fossem imaginadas em cores, mas pudessem ser expressas de forma aceitável para a sociedade somente em p & b.

Não à toa, Kaspar Hauser sonha repetidamente com um deserto: aridez, isolamento, monotonia, falta de rumo. O controle social encarcera o indivíduo, interferindo não só em sua linguagem e expressão, mas até na consciência de si mesmo.

Nas palavras do diretor: “A história de Kaspar Hauser é sobre o que a civilização faz com todos nós, como ela nos deforma e destrói nos trazendo para dentro da linha da sociedade”. 6



"O mundo é todo mau."

O mais melancólico Herzog até agora, Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle é mais uma obra-prima inquestionável. Obrigatório.


Algumas curiosidades:

– O filme ganhou o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio Especial da Crítica no Festival de Cannes em 1975.

– Como sempre, o filme não foi bem recebido na Alemanha, onde alguns críticos o compararam (injustamente) a L'Enfant Sauvage (1970), de Truffaut, apenas porque este é sobre um médico que cuida de um garoto selvagem, que vivia na floresta, ainda que as abordagens sejam totalmente distintas.

– Conhecido mundo afora como O Enigma De Kaspar Hauser/The Enigma Of Kaspar Hauser, o título original é a versão em alemão de uma fala do filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade – “Cada um por si e Deus contra todos”; ao contrário do que muitos pensam, a citação não existe no livro de Mário de Andrade.

– A performance intensa do protagonista em muito se deve a Bruno Schleinstein (1932–2010), conhecido como Bruno S., músico de rua com problemas mentais (passara juventude inteira em sanatórios) com histórico de maus-tratos maternos e que até fora cobaia de experimentos nazistas, e que nunca havia atuado profissionalmente. Nas palavras de Herzog: “Bruno estava muito consciente de que o filme era muito sobre como a sociedade o destruiu da mesma forma que matou Kaspar Hauser”. 7

Bruno S, digníssimo em todo o filme

– A despeito das infames dificuldades que houve para que ele decorasse os textos e contracenasse com o elenco, Herzog fez mais um filme com ele, Stroszek (1977), inspirado na vida do próprio Bruno.

– A epígrafe do filme – “Estes gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio?” – é citação do escritor e dramaturgo alemão Georg Büchner (1813–1837), de quem Herzog adaptou para o cinema, anos mais tarde (1979), sua última peça, Woyzeck, de 1837.

– Entre as especulações sobre a origem de Kaspar Hauser, todas esdrúxulas, temos de ele ser apenas um mendigo espertalhão se fingindo de deficiente mental até ser neto de Napoleão Bonaparte.

– O filme foi distribuído nos EUA por Francis Ford Coppola, fã declarado do diretor alemão (inclusive, como já dissemos, Aguirre, Der Zorn Gottes influenciou diretamente Apocalypse Now).

– Helmut Döring, o Hombré de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen, faz uma ponta como o rei-anão do circo de aberrações.


– Outras pontas, não creditadas, são de Walter Steiner (de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner), Florian Ficke (de Lebenszeichen e do Popol Vuh), Herbert Achternbusch (corroteirista de Herz Aus Glas) e Clemens Scheitz (que apareceria também em
Herz Aus Glas e Stroszek).


¹
Prefácio do filme
² 6 7 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2000.
³ 4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
5 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.